Uma proposta de lei que dá às pessoas cegas de apenas um olho os mesmos benefícios que as pessoas com deficiência têm, além de garantir a implantação da prótese ocular pelo sistema público de saúde, dividiu opiniões em audiência pública da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) nesta segunda-feira (1º).
O Projeto de Lei 1.615/2019, que pretende alterar o Estatuto da Pessoa com Deficiência, está sendo relatado pelo senador Flávio Arns (Rede-PR). Ele quis ouvir a opinião de especialistas sobre a iniciativa, de autoria dos senadores Rogério Carvalho (PT-SE), Rose de Freitas (Podemos-ES), Wellington Fagundes (PL-MT) e Otto Alencar (PSD-BA).
— Ninguém deve ficar para trás, e nós vamos dar toda atenção a esse projeto de lei para atender à dignidade do ser humano. Todos devem participar desse debate porque precisamos mesmo discutir, esclarecer, entender e ouvir os vários pontos de vista até chegarmos ao ponto adequado — comentou Arns.
Diagnosticado com visão monocular do olho direito aos 10 anos de idade, Rogério Carvalho nunca soube os motivos do seu problema. Formado em medicina, o senador disse que foi impedido de realizar cirurgias por enxergar apenas por um olho. Ele sustenta que as pessoas com essa característica são deficientes e, portanto, merecem ser incluídas na lei, assim como são as portadoras de doenças como Aids e hérnia de disco, por exemplo.
— Quem não tem um olho não tem um olho. Não é psicológico. É real, é físico, é material, é orgânico, e isso tem impacto na vida — exclamou.
Debate
O professor e proprietário do Portal da Deficiência Visual Wagner Alves Ribeiro Maia é contrário à medida. Ele explicou que ninguém precisa se tornar deficiente para ter acesso ao serviço público de saúde e que as classificações de deficiência não se podem ser misturadas. Maia considerou que há um “jabuti” na proposta de lei — uma mudança que não tem relação com o tema da proposição.
— Há uma grande cortina de fumaça nesse projeto — advertiu.
Também contrário ao PL, o analista judiciário Francisco da Silva Soares esclareceu que o fornecimento de prótese ocular já está previsto na tabela do Sistema Único de Saúde (SUS). Ele disse que recebeu assistência do governo quando teve o olho esquerdo perfurado em um acidente de trabalho em 1997. Para Francisco, a intenção dos que defendem a matéria é alcançar vantagens como a reserva de vagas em concursos públicos.
— A aprovação desse projeto tornará a Lei Brasileira de Inclusão uma “lei brasileira de exclusão”. Nenhum empresário vai querer contratar um deficiente visual para o qual tenha que adquirir software ao custo de cerca de R$ 6 mil, ao passo que ele vai poder colocar para trabalhar um monocular, que não precisa de nenhuma adaptação — explicou.
O presidente do Comitê Brasileiro de Organização Representativa das Pessoas com Deficiência (CRPD), Moisés Bauer, lembrou que o tema é discutido há muito tempo nas instâncias de controle social. Ele frisou que, em 2007, o Legislativo aprovou uma matéria com teor semelhante, vetada posteriormente pelo Executivo.
Ao questionar o grau de bloqueio que os monoculares enfrentam, Bauer afirmou que os defensores do PL 1.615/2019 devem apontar impedimentos mais precisos quanto à plena participação dessas pessoas em sociedade. Para ele, a medida deve ser analisada do ponto de vista biopsicossocial, que abrange aspectos biológicos, psicológicos e fatores sociais.
—A pessoa que tem uma deficiência visual encontra barreiras arquitetônicas e na comunicação, por exemplo. Não é o mesmo de quem tem visão monocular e, para mim, é uma frustração não ver apontamentos mais concretos de barreiras por aqueles que defendem essa proposição.
Representante do Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO), Maria Aparecida Onuki Haddad explicou que a visão monocular não é tecnicamente equiparada à condição de deficiência visual e que o cego de um olho não necessita dos mesmos recursos de tecnologia assistida. Ela defendeu mais estudos para comprovação da influência da condição monocular na qualidade de vida dos indivíduos com essa característica.
O representante do governo Volmir Raimondi declarou que o Executivo é contrário ao projeto de lei. Coordenador-geral de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência da Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, ele afirmou que os monoculares já são atendidos pela Lei Brasileira de Inclusão (LBI), cuja avaliação já considera os aspectos biopsicossociais. E garantiu que as próteses oculares são custeadas pelo governo.
— Somos contra determinar a deficiência monocular de forma legal porque isso ultrapassa a nossa LBI. Essa medida, inclusive, traria uma necessidade de adequações à legislação futura, com vistas a estender as políticas públicas afirmativas a quem realmente precise.
Contraponto
Caso aprovada, a nova norma será denominada Lei Amália Barros. Jornalista e militante dos direitos dos deficientes monoculares, ela perdeu a visão de um olho aos 20 anos, por complicações da toxoplasmose. Foram 12 cirurgias entre a retirada do globo ocular e a implantação de prótese.
Amália ressaltou que as pessoas com visão unilateral apresentam limitações médicas, psicossociais, educacionais e profissionais, sendo alvos de discriminação e, portanto, precisam ser reconhecidas como pessoas com deficiência. Ela atribuiu ao governo a responsabilidade de bancar os tratamentos dos monoculares e comentou críticas de pessoas contrárias à medida.
— Essa lei é de interesse público, e não apenas nosso. Reitero que quem manda no Brasil são os brasileiros e dizer que a minha luta pela aprovação da lei é uma fraude é calúnia. Eu tenho dinheiro para a minha prótese. Mas, e quem não tem? — questionou.
Favorável ao PL 1.615/2019, o advogado Antonio Rulli Neto disse que todo trabalho voltado à inclusão é válido. Segundo ele, os mais de 102 mil apoios ao projeto, registrados no portal e-Cidadania do Senado, não são “contra as pessoas com deficiência, mas em prol de uma causa”.
— Que se crie uma proporcionalidade [no texto], mas não se exclua o monocular. Essa é uma causa importante e justa, que está sendo discutida há quase 20 anos, e estamos aqui para somar, não para brigar. Essa é uma discussão democrática — ponderou.
Militante da causa, Diego Chevillarde da Silva Pereira disse que os monoculares já têm direitos reconhecidos em 20 estados brasileiros, além do Distrito Federal. Ele citou que as defensorias públicas de cinco unidades da federação publicaram resoluções reconhecendo a cegueira de um olho como deficiência, e afirmou que o fato deve ser considerado. Pereira assegurou que a aprovação do projeto pelo Congresso não representa uma ameaça às vagas destinadas às demais pessoas com deficiência no Brasil.
— Nós, monoculares, já somos inseridos na LBI. O que falta é as pessoas terem consciência e interpretarem a lei de forma correta — salientou.
e-Cidadania
A audiência pública da CDH recebeu mais de 380 comentários de internautas, por meio do portal e-Cidadania. Para Rosirene Pereira, de Goiás, o direito à prótese ocular não é questão de estética, “é direito”. Icaro Siqueira, de São Paulo, considerou a aprovação da proposta “mais do que conveniente”. Na opinião de Isabella Braz Antonello, do Rio Grande do Sul, qualquer limitação deve ser estudada e, principalmente, tratada com empatia.
Adriana Macedo, do Distrito Federal, ponderou que países desenvolvidos, assim como a Organização Mundial da Saúde, reconhecem a visão monocular como deficiência. Carolina Verano, de São Paulo, escreveu que todo cidadão merece respeito e dignidade e que os cegos e os monoculares devem se unir, “a fim de acabar com a competição”. Da Bahia, Lucas Vieira da Rocha afirmou ter limitações por sua visão monocular, e se declarou “a favor da nova lei”.
Embora concorde com o princípio da proporcionalidade, Andressa de Catalan, do Paraná, escreveu que um monocular jamais terá as mesmas dificuldades de um cego ou pessoa com baixa visão. Junior Rasbolt, do Paraná, questionou as reais limitações de quem tem visão monocular, comparadas às pessoas que têm “deficiências visuais graves”.
Rita de Cassia Luz Suenaga, de Mato Grosso do Sul, ponderou se haveria justeza na concorrência entre uma pessoa com visão monocular e outra cega em concursos públicos, por exemplo. Marcelo Almeida, de Minas Gerais, considera a inclusão “um exagero”. Para Lia Carvalho, do Piauí, os inúmeros comentários favoráveis de monoculares se devem ao fato de as pessoas cegas não terem acessibilidade para se pronunciar.