O Ministério Público Federal (MPF) recomendou ao Ministério da Saúde, ao Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Data-SUS) e à Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) a adoção, em até 15 dias, de medidas operacionais necessárias para tornar obrigatório o preenchimento por autodeclaração do campo raça/cor e implementar, com obrigatoriedade de preenchimento por autodeclaração, o campo etnia nos sistemas e-SUS Notifica (e-SUS-VE) e no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan).
As medidas devem ser adotadas em todos os sistemas de notificação de doenças e agravos epidemiológicos do SUS, em caráter permanente, no prazo de 30 dias. A recomendação tem o objetivo de evitar subnotificações quando a opção autodeclarada pelo paciente seja “indígena”.
As demandas para obrigatoriedade de preenchimento nos sistemas foram objeto de discussão específica pelo Grupo de Trabalho Saúde Indígena Manaus, inclusive com participação de representantes do Data-SUS e da SVS em reuniões sobre o tema. Em uma dessas reuniões, realizada no início de junho, definiu-se que os representantes do Data-SUS e da SVS levariam a demanda aos gestores dos órgãos e apresentariam resposta até o dia 5 de junho. Entretanto, o prazo expirou sem que alguma informação fosse apresentada sobre o atendimento da demanda.
A necessidade de adoção das medidas também foi indicada em carta da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) ao Ministério da Saúde, em que encaminham “solicitações que não só contribuirão para o aprimoramento das ações em todos os estados e municípios, como também irão propiciar a realização de pesquisas que possam aprofundar as questões sociais, raciais e econômicas no contexto desta pandemia”.
Após medidas judiciais para viabilizar essa identificação, foi habilitado o campo raça/cor no sistema e-SUS Notifica (e-SUS-VE), software criado recentemente para notificação de síndromes gripais sem internação. No entanto, esse campo não é de preenchimento obrigatório e não há identificação da etnia no referido sistema, de modo que grande parte dos indígenas têm sido automaticamente classificados nos atendimentos como pardos.
Subnotificação de casos no Amazonas – Segundo o MPF, somente os casos notificados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) vinham gerando registro dos casos de indígenas contaminados, de modo que grande parte dos pacientes indígenas de comunidades urbanas no Amazonas que buscaram atendimento diretamente nas unidades do SUS não foram identificados como indígenas, o que tem gerado inconsistências entre os dados registrados.
Em razão dessa subnotificação que contribui para a invisibilidade dos indígenas que vivem nas cidades, organizações indígenas como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) passaram a fazer seus próprios levantamentos a partir do controle social, obtendo dados que revelam uma clara defasagem dos números de notificações oficiais de indígenas infectado.
Na recomendação, o MPF enfatiza que o registro da quantidade de indígenas que buscam atendimento em razão de contaminação pela covid-19 é fundamental para orientar a execução e adequação de políticas públicas, bem como a adoção de medidas específicas pelo poder público, visto que a ausência deste registro obrigatório gera impactos negativos e inadequação de políticas públicas, uma vez que não permite a aplicação de uma política diferenciada de saúde com base em dados epidemiológicos específicos de determinados grupos, sejam indígenas, negros ou outros.
Necessidade de atendimento diferenciado – Mesmo com a divulgação, pela Sesai, do Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo coronavírus em Povos Indígenas e dos Informes Técnicos nº. 1, 2 e 3/2020, que visam a adoção de medidas com o propósito de reduzir a circulação dos indígenas entre as aldeias e cidades e evitar exposição ao contágio, em Manaus, povos e comunidades indígenas situadas nos centros urbanos não recebem atendimento diferenciado pela Sesai, sendo geralmente atendidas pelas unidades de referência do SUS municipais e estaduais.
De acordo com o MPF, as especificidades imunológicas e epidemiológicas tornam os povos indígenas particularmente suscetíveis ao novo coronavírus, sobretudo tendo em vista que doenças respiratórias são uma das principais causas de óbitos entre estes povos, considerando que viroses respiratórias foram vetores do genocídio indígena em diversos momentos da história do país, registrados em documentos oficiais, como o relatório da Comissão Nacional da Verdade de 2014 e o relatório Figueiredo de 1967.
Ainda segundo o órgão ministerial, os aspectos socioculturais de muitos povos indígenas, como a concepção ampliada de família e de núcleo doméstico, habitação em casas coletivas e o compartilhamento de utensílios, podem facilitar o contágio exponencial da doença nas aldeias, característica que se repete nas comunidades localizadas nos núcleos urbanos.
O MPF fixou o prazo de 15 dias para que os destinatários informem o acatamento da presente recomendação, encaminhando esclarecimentos detalhados acerca das providências adotadas para seu cumprimento. O não atendimento da recomendação ocasionará a responsabilização dos destinatários e dirigentes recomendados por sua conduta omissiva, sujeitando-os às consequentes medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis.