O Ministério Público Federal (MPF) requereu à Justiça Federal a inclusão de novas declarações, proferidas em março, ao processo movido contra a União e a Fundação Nacional do Índio (Funai) em razão dos constantes discursos desumanizantes e discriminatórios proferidos por autoridades do atual governo federal contra os modos de vida dos povos indígenas, com impactos concretos sobre os seus territórios, como no caso do povo Waimiri-Atroari. No novo documento, o MPF traz falas públicas do presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), produzidas às vésperas do ajuizamento da ação, ocorrida no último dia 11.
O órgão reitera o pedido de direito de resposta ao povo Waimiri-Atroari e pede que os órgãos e servidores da Administração sejam orientados a não incitarem a discriminação, além de um plano da Funai e da União de combate ao discurso de ódio contra povos indígenas.
No primeiro episódio relatado na manifestação, ocorrido durante solenidade de lançamento do programa Abrace o Marajó, no dia 3 de março, o MPF destaca que o presidente voltou a se referir aos territórios de indígenas e de comunidades tradicionais como empecilho ao progresso da nação e que essas populações foram manipulados em prol de interesses de estrangeiros. Jair Bolsonaro também defendeu projeto integracionista que, de acordo com o MPF, contraria a lei fundamental por hierarquizar os diferentes grupos que compõem a sociedade brasileira.
“No passado, não tiveram responsabilidade quando demarcaram à vontade e ao sabor de interesses internacionais grandes reservas indígenas e uma quantidade enorme de quilombolas. Estamos lutando contra isso, não para abandonar o nosso índio ou o quilombola, mas para integrá-lo à sociedade. E ao fazer tal medida, nós possamos levar o progresso para todas as regiões do Brasil”, declarou o presidente na ocasião.
Em outro momento, durante a abertura da Conferência Internacional Brasil – Estados Unidos, em Miami, o presidente falou da existência de “uma verdadeira indústria da demarcação de terras indígenas”, iniciada, segundo ele, a partir de 1992.
Incitação a discurso de ódio – Na ação civil pública, o MPF também destacou os impactos negativos que as declarações do presidente geram, tendo ressaltado o entendimento da Procuradoria-Geral da República sobre as manifestações dos governantes e o seu potencial lesivo.
O parecer da PGR na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 635, que trata das falas do governador do estado do Rio de Janeiro e a política de segurança pública, frisa que “as palavras da mais alta autoridade do Poder Executivo, federal ou estadual, ostentam caráter mandatório e são recebidas por agentes públicos como provenientes de indivíduo com acentuada primazia hierárquica” e conclui que “há potencial lesivo em declarações públicas que promovem, incitam, aprovam ou celebram mortes em operações policiais”.
A ação civil pública ajuizada contra a Funai e a União considera que há o mesmo potencial lesivo quando se nega humanidade aos povos indígenas e quando se estimula um único modo de vida contra aquele que o povo Waimiri-Atroari desenvolve, tratando-os como “seres manipulados” ou “achacadores”.
O MPF destaca que os indígenas Waimiri-Atroari já sofreram danos concretos decorrentes desses discursos, quando foram agredidos em seu território por parte do deputado estadual de Roraima Jeferson Alves (PTB), no final de fevereiro.
O parlamentar, munido de uma motosserra e de um alicate corta-vergalhão e acompanhado de assessores, se dirigiu ao limite da Terra Indígena Waimiri-Atroari, entre os estados do Amazonas e Roraima, no dia 28 de fevereiro, e cortou as correntes que controlam o tráfego de carros na BR-174, que atravessa o território. Indígenas que faziam a vigilância no local foram trancados em uma guarita, enquanto o deputado gravava toda a ação. Ao final do vídeo, dedicou a agressão ao presidente da República.
Direito de resposta – A ação pede que o governo brasileiro seja condenado fazer um pedido de desculpas público dentro da terra indígena, a elaborar um plano de combate ao discurso de ódio contra os povos indígenas brasileiros, a financiar uma cartilha contando a história do povo Waimiri-Atroari e a dar direito de resposta, por meio da publicação de uma carta desse povo, tanto no site da presidência da República quanto no perfil do presidente da República no Twitter e na transmissão semanal que o presidente faz no Facebook.
O direito de resposta no Twitter deve se dar por meio de uma sequência de tuítes em que conste a íntegra da carta feita pelos indígenas, que deve ficar fixada no topo do perfil durante o prazo de um ano. O direito de resposta na chamada ‘live’ do Facebook deve ser através da participação dos Waimiri-Atroari em três transmissões consecutivas do presidente da República, ocupando pelo menos ¼ do tempo total de cada transmissão.
A ação pede ainda que, nos termos da convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) contra todas as formas de discriminação racial, seja feito documento e manifestação pública dos ministérios e da presidência da República pedindo que nenhuma autoridade incite ou encoraje a discriminação racial.
A ação tramita na 3ª Vara Federal do Amazonas, sob o número 1004416-31.2020.4.01.3200.