Alterar a chamada Lei da TV Paga pode acarretar grandes impactos aos consumidores e à cadeia produtiva do setor de audiovisual brasileiro e, por isso, o debate sobre a questão precisa ser mais amplo e aprofundado. Essa foi uma das sugestões apresentadas durante a audiência pública interativa promovida pela Comissão de Ciência e Tecnologia (CCT) na tarde desta terça-feira (27), para discutir o projeto de lei (PL 3.832/2019) que permite que empresa que distribui canais de televisão possa também produzir o conteúdo audiovisual, revogando as restrições à concentração de propriedade cruzada entre telefônicas, emissoras de radiodifusão e produtores de conteúdo.
O projeto, de autoria do presidente da CCT, senador Vanderlan Cardoso (PP-GO), altera a Lei do Serviço de Acesso Condicionado (SeAC), ou Lei da TV Paga (Lei 12.485, de 2011), acabando com as restrições à propriedade cruzada entre as prestadoras de serviços de telecomunicações de interesse coletivo (empresas de telefonia e internet), as concessionárias e permissionárias de serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens (emissoras de TV e rádio) e produtoras e programadoras do SeAC (TV paga). O projeto revoga os artigos 5º e 6º da lei.
Para o professor de Cinema da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Alfredo Manevy, a Lei 12.485 é uma das mais avançadas e modernas do mundo e ajudou na abertura do mercado brasileiro e deu mais espaço para a produção independente. Ele disse ser preocupante que o principal objetivo do PL seja atender a uma demanda de grandes conglomerados de comunicação.
A gigante das telecomunicações AT&T quer comprar o grupo Time Warner — controlador de marcas como CNN, HBO, e Cartoon Network. O negócio, entretanto, precisa ter a aprovação dos países onde a empresa atua. No Brasil, a compra seria ilegal devido às vedações presentes no art. 5º da Lei da TV Paga. Manevy pediu que os produtores independentes de conteúdo também sejam ouvidos sobre as mudanças propostas. Segundo ele, a lei proporcionou “um boom na indústria audiovisual” nos últimos anos em todo o Brasil.
O professor afirmou que a aprovação do PL 3.832/2019 vai acarretar o “fim da pluralidade garantida pela lei, o fim da garantia de exibição de conteúdo nacional independente e regional, interrupção da capacidade da Ancine de investir, perda de ICMS para os estados e perda da capacidade de investimento do fundo setorial”.
— Peço atenção aos senadores, porque os estados dos senhores serão atingidos por essa mudança. Há uma preocupação imensa no setor audiovisual que não se sente contemplado com essas mudanças — afirmou Manevy.
Representando o Ministério da Economia, Cláudio Evangelista de Carvalho disse que a pasta tem compromisso com a promoção da concorrência e com o aumento da produtividade e da competitividade da economia. Ele afirmou que o governo federal vê com simpatia o projeto de lei, porém ainda não há posição oficial.
— A pauta está aberta e o governo está disposto a discutir com toda a sociedade — disse Carvalho.
O vice-presidente de relações institucionais da empresa Claro Brasil, Flávio Andrade, afirmou que as mudanças na Lei do SeAC podem acarretar vários prejuízos aos consumidores, aos produtores independentes e a empresas brasileiras. Ele sugeriu que o PL seja analisado também pelas comissões de Assuntos Econômicos (CAE) e de Educação (CE) devido à complexidade do tema e dos possíveis impactos.
— Eu vejo os estados perdendo, a população perdendo, o setor audiovisual perdendo, o emprego acabando, os canais nacionais quase que sumindo, os produtores independentes bastante afetados — disse Flávio Andrade ao criticar as mudanças propostas pelo relator que diferem do texto original.
A coordenadora-executiva do Coletivo Brasil de Comunicação Social (Intervozes), Marina Pita, posicionou-se contrária ao PL 3.832/2019 e disse que barreiras à propriedade cruzada beneficiam os consumidores e aumentam a pluralidade de conteúdos. Se a lei for enfraquecida, advertiu, haverá grandes impactos econômicos e culturais.
Já o diretor Jurídico da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), Rodolfo Salema, defendeu que a Lei do SeAC não pode ser aplicada no ambiente da internet. Para ele, o Marco Civil da Internet já regula as questões relativas à rede mundial de computadores.
— A Lei do SeAC não se aplica à distribuição de conteúdo na internet. É a posição da Abert — afirmou Salema.
Por sua vez, o pesquisador e consultor em políticas de Comunicação e Cultura João Brant afirmou que a urgência para alterações na lei é uma demanda de empresas estrangeiras, em especial a AT&T. Para ele, atualizar a lei agora não é urgente para nenhum seguimento nacional que atua no setor. Segundo disse, o mercado audiovisual brasileiro é, atualmente, “vigoroso e dinâmico” e vem crescendo acima da média da economia nacional. Ele afirmou que a ‘integração vertical’ — quando uma mesma empresa detém dois ou mais seguimentos da mesma cadeia produtiva — trará impactos negativos ao consumidor.
O presidente-executivo da Brasil Audiovisual Independente (Bravi), Mauro Garcia, afirmou que a Lei 12.485 já foi declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), inclusive para conteúdos na internet. Conforme informou, há no Brasil hoje mais de 13 mil pequenas e médias empresas produtoras independentes de audiovisual, que geram mais de 300 mil empregos e movimentam cerca de R$ 25 bilhões anuais, gerando R$ 3,3 bilhões em impostos.
Para ele, a Lei do SeAC é boa por reduzir a assimetria regulatória no setor, ter aspectos de defesa do consumidor, obrigar empresas a terem sede no Brasil, valorizar o conteúdo nacional, prever canais de distribuição obrigatória (principalmente canais institucionais como a TV Senado), incentivar investimentos em conteúdo, infraestrutura e capacitação, além de promover equilíbrio concorrencial e maior competitividade.
Representando o Sindicato da Indústria do Audiovisual do Estado de São Paulo, Paulo Roberto Schmidt afirmou que a Lei do SeAC valoriza e dá espaço para o conteúdo audiovisual nacional, o que foi fundamental para fortalecer essa indústria nos últimos anos. Ele defendeu que a lei deve abranger também a internet.
O presidente da Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abratel), Márcio Silva Novaes, disse que a entidade concorda com a revogação dos artigos 5º e 6º da Lei 12.845, mas sugeriu acréscimos na mesma lei para garantir que a verticalização não cause maiores problemas a produtores, empresas e consumidores, como práticas discriminatórias e abuso de poder econômico.
Primeiro item na pauta de votações da CCT desta quarta (28), o parecer do relator, senador Arolde de Oliveira (PSD-RJ), recomenda a aprovação do texto com duas emendas. Para ele, à época da aprovação da lei atualmente em vigor, o crescimento do mercado de TV por assinaturas era vigoroso, e as projeções apontavam para até 30 milhões de assinantes nos anos seguintes, mas não foi o que ocorreu. O rápido avanço da internet levou à popularização de aplicações de vídeo sob demanda, como YouTube e Netflix, diminuindo o interesse pelas TVs por assinatura tradicionais. Dos 20 milhões de assinantes em 2014, em maio de 2019, já eram menos de 17 milhões.
Para ele, a decadência do serviço é considerada irreversível, sendo apenas uma questão de tempo para sua completa substituição por aplicações de vídeo pela internet. O projeto também revoga restrições à produção de conteúdo pelas prestadoras do serviço de TV paga e retira “os conteúdos distribuídos pela internet” da abrangência da Lei do SeAC.
Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)