A atuação do Ministério Público Federal (MPF) no combate à violência obstétrica no Amazonas teve início a partir de denúncia narrando uma série de irregularidades ocorridas em uma instituição hospitalar privada. A partir de procedimento instaurado em 2014, o MPF promoveu audiência pública para debater o assunto, em novembro de 2015, evento do qual participaram órgãos públicos das três esferas de poder, autarquias e sociedade civil.
A audiência foi considerada um marco histórico no reconhecimento de que a violência obstétrica ocorre em todo o sistema de saúde e que os profissionais da saúde possuem resistência ao debate sobre o tema. Na ocasião, foram constatadas a falta de humanização no trato com as pacientes e a necessidade de capacitação para reformulação de condutas profissionais que representassem risco à saúde da mãe e da criança durante o trabalho de parto.
Após identificar as irregularidades, o MPF recomendou à Secretaria Municipal de Saúde (Semsa), à Secretaria de Estado de Saúde (Susam), ao Conselho Regional de Medicina do Amazonas, ao Conselho Regional de Enfermagem do Amazonas, à Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e aos hospitais privados de Manaus medidas para garantir a aplicação de leis que tratam dos direitos da gestante, como a presença de acompanhante durante o parto, além de realizar campanhas de conscientização e coibir atos que atentem contra os direitos assegurados pela legislação.
O MPF também promoveu reuniões com diversas instituições para a realização de acordo com o objetivo de melhorar o atendimento à mulher em toda a rede de saúde do Amazonas. Em reunião com representantes da Susam, o MPF recebeu convite para ir às maternidades participar de rodas de conversas com a comunidade interna dessas unidades hospitalares, a fim de diagnosticar os principais problemas enfrentados. Rodas de conversas foram promovidas em todas as maternidades públicas em Manaus, com a participação de gestores, médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e pacientes.
Como resultado desse trabalho de diagnóstico, o MPF identificou que havia resistência às boas práticas no parto recomendadas pelo Ministério da Saúde e pela Organização Mundial de Saúde (OMS), levando à conclusão de que a principal causa dessa negligência eram deficiências na formação dos profissionais de saúde.
As rodas de conversa foram estendidas às universidades para verificar de que forma as instituições de ensino tratavam a temática do atendimento à mulher no estado gravídico e durante e após o parto. A partir desse diálogo, foi observado que os professores e preceptores reproduziam práticas retrógradas e contrárias às leis vigentes para a humanização do parto. Ao constatar que as causas da violência obstétrica eram comportamentais, o MPF entendeu que havia a necessidade de atuação em rede com órgãos e entidades com atribuição de defesa da saúde da mulher, a fim de desconstruir as práticas violadoras de direitos e reformular o modelo de assistência.
Termo de cooperação e criação de comitê
A segunda audiência pública sobre o combate à violência obstétrica no Amazonas foi realizada em 18 de novembro de 2016 e resultou em termo de cooperação firmado entre o MPF e outros órgãos e instituições, assumindo o compromisso com o combate à violência obstétrica, além da criação do Comitê de Combate à Violência Obstétrica, no Amazonas. O grupo faz acompanhamento do atendimento nas maternidades, realiza atividades frequentes de atualização e ainda criou um sistema integrado para cadastro e acompanhamento de denúncias relacionadas à violência obstétrica. O comitê promoveu sua primeira reunião em 18 de maio de 2017 e continua em articulação, sem prazo de finalização.
O grupo tem reavaliado as atividades já empreendidas, de acordo com as metas inicialmente estipuladas no termo de cooperação, bem como analisado os casos de violência obstétrica já reportados ao MPF e ao comitê. Em cada análise, o objetivo é verificar a causa principal da violência cometida e suas possíveis consequências, extraindo desses casos pontuais novas possibilidades de atuação para os órgãos parceiros que assinaram o termo.
Como encaminhamento das reuniões realizadas pelo comitê, a Susam se comprometeu a incluir, em 2017, em contrato de serviço de saúde prestados às maternidades estaduais, cláusulas que visam garantir os direitos da mulher e da criança e prevenir a violência obstétrica. No entanto, a empresa que presta serviços de obstetrícia nas maternidades apresentou resistência à formalização da mudança.
Diante do impasse, o MPF, em parceria com o MP-AM e o Ministério Público de Contas, expediu recomendação para que a Susam revisasse integralmente o contrato ou adotasse providências que garantissem a contratação de empresa que efetivamente respeite as boas práticas para o parto. O Ministério Público e a Defensoria Pública da União (DPU) também recomendaram que a Susam e a Semsa garantissem o direito dos usuários do sistema de saúde pública, especialmente às mulheres gestantes ou em período pós-parto, a cópia integral do prontuário de atendimento médico.
Entre as ações bem-sucedidas a partir dos trabalhos de fiscalização desenvolvidos pelo comitê, destaca-se o Centro de Parto Normal, da Maternidade Balbina Mestrinho, que estava subutilizado na ocasião da primeira visita do MPF e, atualmente, é referência para outras maternidades. Outro avanço está relacionado à Defensoria Pública do Estado, que instituiu um núcleo específico para atendimento de demandas relacionadas à violência obstétrica e tem atendido mulheres que buscam assistência jurídica.
Caso ajuizado
Em novembro de 2018, o MPF e o MP–AM ingressaram na Justiça com ação civil pública contra o estado do Amazonas e a União para assegurar medidas de combate à violência obstétrica e garantir o direito das mulheres ao tratamento humanizado previsto na legislação brasileira. Entre os principais pedidos, a ação requer que o estado do Amazonas seja obrigado a incluir, nos contratos dos profissionais de saúde que atuam em maternidades, cláusulas claras e explícitas quanto à atualização profissional e à observância das normas técnicas definidas como diretrizes para a atenção à parturiente e à abortante no Sistema Único de Saúde (SUS).
O MPF e o MP-AM também pediram que sejam disponibilizados às usuárias do sistema canais efetivos para denúncias e que as apurações de eventuais casos de violência obstétrica formalizados à Susam sejam finalizadas em tempo oportuno.
Para o Ministério Público, a União deve passar a coordenar o SUS no Amazonas para promover a obediência às normas e diretrizes avaliadas pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do Sistema Único de Saúde (Conitec) como mais benéficas para o resguardo da vida e da saúde das mulheres. As diretrizes da comissão estão relacionadas ao uso de procedimentos e intervenções, ao local e assistência ao parto, ao manejo da dor e a outras questões relacionadas ao pré-parto, parto e pós-parto.
Outros pedidos estão relacionados à reavaliação das maternidades que receberam o selo Hospital Amigo da Criança no Amazonas, considerando as denúncias de violência registradas nas unidades de saúde e à condenação ao pagamento de danos morais coletivos, no valor de R$ 1 milhão, a serem revertidos para a compensação pelos danos sofridos por mulheres vítimas de violência obstétrica no Amazonas.
A ação civil pública foi ajuizada durante a Campanha 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres, cuja programação contou com caminhadas, rodas de conversas dentro de maternidades e palestras. O documento traz relatos impactantes de casos de violência obstétrica ocorridos no Amazonas, apresentados ao comitê.
“No dia 9/6/2014, a minha filha foi internada na Maternidade Balbina Mestrinho, com 22 semanas de gestação, em estado muito grave, com infecções pulmonar e urinária. O lúpus estava em atividade e agressivo, o que comprometia ainda mais a sua imunidade. […] Durante os 21 dias em que esteve na maternidade, ela foi hostilizada por engravidar na fase ativa do lúpus e muitos profissionais (de técnicos de enfermagem a médicos) a constrangiam em público na enfermaria, culpando-a pelo seu quadro.” (Relato de mãe de vítima de violência obstétrica ocorrida na referida maternidade, apresentado ao MPF)