Foi na língua Tukano que a Universidade Federal do Amazonas (Ufam), por meio do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (Neai), deu boas-vindas aos presentes no lançamento da coleção ‘Reflexividades Indígenas’, escrita por mestres do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS/Ufam). A coleção é composta por quatro publicações frutos das respectivas dissertações dos alunos Dagoberto Lima Azevedo, Gabriel Sodré Maia, João Paulo Lima Barreto e João Rivelino Rezende. Os pesquisadores foram responsáveis por contribuírem com a construção de uma epistemologia Yepamahsã(Tukano) ao sistematizar conceitos, concepções e práticas desse povo que reside no Alto Rio Negro.
O evento aconteceu na tarde de ontem, 26, no Centro de Medicina Indígena Bahserikowi, localizado na Rua Bernardo Ramos, n° 97, Centro de Manaus. O acolhimento inicial foi o feito pelo senhor Ovídio Lemos Barreto, um dos responsáveis pelo Centro de Medicina Indígena Bahserikowi. “Sejam todos bem-vindos a esse espaço, somos do Alto do Rio Negro e estamos celebrando a publicação da coleção ‘Reflexividades Indígenas’. Os conhecimentos que, de forma tradicional, são passados oralmente, agora, também estão materializados nos livros”, conta.
De acordo com João Paulo Lima Barreto, autor do livro ‘Waimahsã: peixes e humanos’, a coleção é um passo para mostrar como os povos indígenas entendem, organizam, pensam, agem e se relacionam com a sociedade e os ambientes. “No campo da Antropologia vem se discutindo questões de simetrias. Queremos propor um diálogo simétrico, de igual para igual. Todo o conjunto de informações, conceitos e experiências do nosso povo, agora, estão adentrando a Universidade e eles também formam um sistema. Sempre fomos colocados como povos distintos e com um olhar diferente da realidade. Muitas vezes, esse olhar foi traduzido a partir dos conceitos ocidentais, por exemplo, as mitologias, benzimentos ou rituais. Essas são palavras e jargões ocidentais e o que propomos é trazer os nossos conceitos para dentro da Universidade”, enfatiza.
A epistemologia Yepamahsã é articulada por meio de um tripé que leva em conta o conjunto das formulações discursivas e práticas de grupo, buscando explicá-las. A primeira delas, denominada Kihti-ukusetrata do conjunto das narrativas míticas; a segunda, o Bahsesédiz respeito ao poder dos conhecedores em estabelecer políticas cósmicas e, por fim, o Bahsamorié voltado para as cerimônias e os rituais associados a um ciclo anual, organizado a partir da dinâmica das constelações.
Para o coordenador do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (Neai), professor Gilton Mendes dos Santos, o lançamento dos livros é mais uma etapa de um longo trabalho. “Chegamos, há mais de 12 anos, com o desafio de criar um Programa de pós-graduação que está inserido em um contexto indígena impressionante, com uma diversidade de culturas, povos e línguas sem igual na América do Sul. A Ufam tem o privilégio e o compromisso com essa realidade. Fazer o lançamento desse conjunto de publicações é a materialidade de uma produção intelectual feita por meio de um percurso que inclui cursos, seminários, palestras, textos e discussões. Nós temos, aqui, os frutos de trabalhos que têm como um dos eixos estruturantes a formação de indígenas e esse é o diferencial. Nossos alunos indígenas estão no centro da produção científica, sistematizando conceitos e experiências”, ressalta.
Segundo o doutor em Antropologia Social, Luiz Davi Vieira Gonçalves, docente do curso de Teatro da Universidade Estadual do Amazonas (UEA), há pelo menos dois pontos distintos a serem observados acerca das publicações. “O primeiro é como colega de sala de aula e como nós os percebemos dentro da matriz curricular acadêmica. Há uma leitura ocidental dos povos indígenas e os colegas indígenas trazem para a academia conhecimentos genuínos. Essa troca é enriquecedora. O segundo ponto, como professor, começo a entender esse movimento de povos indígenas nas Universidades como algo capaz de revolucionar a ciência. Nós, antropólogos, olhando de forma simétrica é possível perceber que o que encontramos até aqui é muito pequeno diante da diversidade e fertilidade de conhecimentos que vem dos povos tradicionais. Quando vejo esse conhecimento materializado nas publicações, dissertação e teses defendidas na língua, por exemplo, enxergo os passos gigantescos dados dentro da academia brasileira. A presença deles dentro deste sistema burocrático é de forma genuína e não há um desligamento com o lugar de origem”, aponta.
O diretor da Editora da Ufam (Edua), professor Sérgio Freire, não escondeu a satisfação ao lembrar que a função da Edua é fazer circular o conhecimento. “Nós não só captamos os processos de produção intelectual das pesquisas desenvolvidas na Ufam, mais do que isso, essas pesquisas precisam ser devolvidas para a sociedade. Cada vez que um livro é publicado, seja no formato digital ou impresso, é uma das formas da Universidade prestar contas à comunidade sobre os investimentos aplicados na Instituição”, recorda.
Ele conta, ainda, que livros são atos políticos de resistência. “As publicações lançadas com a temática indígena fazem parte de um movimento político significativo, principalmente, porque esse não é um tema prioritário. Nós já caminhamos bastante no registro dos conhecimentos relacionado às comunidades tradicionais do Amazonas, mas precisamos continuar publicando e circulando esses aprendizados”, encerra.
Coleção ‘Reflexividades Indígenas’
A publicação ‘Agenciamento do mundo pelos Kumuã Ye’pamahsã: O conjunto de bahseses na organização do espaço Di’ta Nuhku‘ de Dagoberto Lima Azevedo trata da concepção do espaço terra-floresta. O autor volta-se para a forma singular de selecionar plantas, animais, seres visíveis e invisíveis, tipos de solo, etc. Dagoberto Lima é Tukano do sib Nãhuriporã, nascido e criado na comunidade Mahawi’i Tuhkuro(Pirarara – Poço), Rio Tiquié, terra indígena do Alto do Rio Negro.
O livro ‘Formação e transformação de coletivos indígenas do noroeste amazônico: do mito à sociologia das comunidades’, de autoria de João Rivelino Rezende Barreto, aborda o sistema hierárquico na organização social do alto do Rio Negro, com foco nos Tukano orientais e a partir do que informam os Yupuri Bubera Porá. O autor é nascido em São Domingos Sávio (AM) e trabalha, atualmente, como professor no curso de Pedagogia na Faculdade Salesiana Dom Bosco.
Já o título “Bahsamori: o tempo, as estações e as etiquetas sociais dos Ye’pamahsã”, escrito por Gabriel Sodré Maia, diz respeito ao conjunto dos grandes rituais e as cerimônias associados a um calendário anual, baseada na dinâmica das constelações. Gabriel Sodré pertence ao grupo Yeparã Oyéporãdos líderes Yepamahsã(Tukano).
Por fim, João Paulo Lima Barreto é autor do livro Waimahsã: peixes e humanos que propõe uma reflexão sobre o conjunto de narrativas míticas que incluem os feitos e as tramas vivenciadas pelos responsáveis pela organização do mundo, dos seres e das coisas. João Paulo Lima é nascido na aldeia São Domingos, no município de São Gabriel da Cachoeira (AM), Idealizador do Centro de Medicina Indígena e aluno de doutorado do PPGAS/Ufam.
Mais lançamentos
Além da coleção ‘Reflexividades Indígenas’ foram lançados mais três livros com a temática. O primeiro foi ‘Omerõ: Construção e circulação de conhecimentos Yepamahsã’,escrito pelos autores Gilton Mendes dos Santos, Carlos Machado Dias Jr., Ernesto Belo, Lorena França, Dagoberto Lima Azevedo, Gabriel Sodré Maia, João Paulo Lima Barreto e João Rivelino Rezende. A publicação é uma síntese do conhecimento Tukano, a partir do tripé conceitual Kihti – Bahsesé – Bahsamori.
De acordo com um dos autores, Ernesto Belo, o título é resultado de um esforço coletivo. “Destaco como diferencial da publicação, não somente o riquíssimo conteúdo presente, mas também a construção coletiva. É raro encontrar um material feito por tantas mãos e que oferece uma chave de leitura da cosmopolítica Tukano, a partir do tripé conceitual e sem pretensão de esgotar o seu complexo sistema de conhecimento”, destaca.
Os outros dois livros tratamde pesquisas etnográficas realizadas no Médio Purus. O título ‘Música na Floresta’ foi organizado por Mário Rique Fernandes e outro intitulado ‘Os Grafismos Paumari’, organizado pela pesquisadora Angélica Maia Vieira.
Os sete livros fazem parte do ‘Projeto Rios e Redes na Amazônia Indígena’, vinculado ao NEAI, desenvolvido entre 2013 e 2016. Essa é uma parceria entre a Universidade Federal do Amazonas (Ufam), a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam) e a empresa Natura Cosméticos. Os livros estão à venda na Livraria Universitária do Amazonas (LUA), no Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (NEAI), Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS/Ufam) e no Centro de Medicina Indígena Bahserikowi.