O Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas ajuizou ação civil pública contra a União para revogar o decreto presidencial que autorizou a plantação de cana-de-açúcar na Amazônia. A ação pede que a Justiça Federal determine que não seja editado novo decreto sobre o tema até que se demonstre, por meio de estudos técnicos e científicos, que a medida não compromete o dever de proteção do meio ambiente.
A apuração do MPF foi iniciada a partir de representação de um pesquisador, acompanhada de estudos científicos publicados na Revista Science, a publicação de maior impacto científico no mundo. No documento, foram apontadas evidências científicas de possíveis danos ambientais irreversíveis provocados pela cultura da cana na Amazônia sobre a biodiversidade e os serviços prestados por ela, com impactos sobre o abastecimento de água e agricultura em várias regiões do país.
A legislação que vigorava desde 2009 restringia o cultivo da cana-de-açúcar em áreas dos biomas Amazônia, Pantanal e Bacia do Alto Paraguai, terras indígenas e áreas de proteção ambiental para evitar que a produção do etanol incentive o desmatamento. O Decreto nº 6.961/09 estabelecia que as áreas indicadas para a expansão da cana-de-açúcar eram aquelas de produção agrícola intensiva e semi-intensiva, lavouras e pastagens.
Estudo técnico que embasou o Decreto nº 6.961/09 apontou que o Brasil possuía, naquele período, cerca de 63,48 milhões de hectares de áreas aptas à expansão do cultivo. Desse total, 18 milhões de hectares foram considerados de alto potencial produtivo, apontando que o Brasil não precisava incorporar áreas novas e com cobertura nativa ao processo produtivo.
Na edição do Decreto nº 10.084/19, que revogou a limitação das áreas para o cultivo da cana-de-açúcar no país prevista decreto de 2009, a União não apresentou nenhuma motivação técnica ou política para a revogação da legislação anterior.
Segundo o MPF, estudos científicos apontam que a revogação dos limites para o cultivo da cana-de-açúcar teriam, como efeito colateral, o aumento do desmatamento na região, além de apresentar ameaças à biodiversidade e florestas adjacentes, considerando que as ‘pastagens naturais’ da Amazônia – locais destinados ao plantio de cana – correspondem a ecossistemas de grande diversidade biológica, abrigando espécies raras ou ameaçadas de extinção.
A diminuição de serviços ambientais essenciais para a agricultura e para o abastecimento de água do sul e sudeste do país também é um dos riscos apontados na ação com base em evidências científicas, já que a Amazônia é responsável pelo transporte do vapor de água que gera chuvas sobre as áreas agricultáveis, por meio do fenômeno conhecido como ‘rios voadores’ que promovem a regulação climática para área com maior população e produção agrícola da América do Sul.
Impacto econômico e social – O Decreto nº 10.084/19, assinado pelo presidente da República Jair Bolsonaro e pelos ministros da Economia, Paulo Guedes, e da Agricultura, Tereza Cristina Corrêa da Costa Dias, em 5 de novembro deste ano, tem ainda, conforme aponta o MPF, o potencial de afetar as exportações de biocombustíveis do país, por conta das medidas protecionistas dos países importadores que se baseiam em garantias ambientais, causando prejuízos ao setor produtivo da cana-de-açúcar, contrário ao decreto.
O Brasil é o maior produtor de cana-de-açúcar do mundo, segundo dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). “Um impacto negativo sobre o setor tem potencial de impactar negativamente toda a economia do país”, destaca o MPF em trecho da ação.
Ao permitir a ampliação das áreas de cultivo de cana-de-açúcar no país, com a edição do Decreto nº 10.084/19, a União assume o risco de causar danos ambientais, sociais e econômicos graves e irreversíveis. Gera ainda dano moral coletivo a toda a sociedade, frustrando a expectativa de que o governo promova a proteção ambiental a que é obrigado pela Constituição Federal.
O MPF pede que a Justiça Federal suspenda imediatamente os efeitos do Decreto nº 10.084/19, para que seja retomada a vigência da legislação de 2009 relativa ao zoneamento agroecológico da cana-de-açúcar, e requer que a União seja impedida de editar novo decreto sobre o assunto até a apresentação de estudos técnicos demonstrando a ausência de ameaça à proteção do meio ambiente.
A União deverá também adotar as providências necessárias, em até 48 horas, para comunicar os órgãos ambientais licenciadores federal, estaduais e municipais da Amazônia Legal para que não sejam autorizadas atividades de plantio de cana-de-açúcar na região.
A ação civil pública inclui pedido de condenação da União, ao final da apuração, ao ressarcimento dos danos materiais eventualmente causados ao meio ambiente, ou a implementar medidas compensatórias correspondentes ao dano ambiental causado, além do pagamento de indenização por dano moral coletivo no valor mínimo de R$ 1 milhão.
A ação tramita na 7ª Vara Federal no Amazonas, sob o nº 1016202-09.2019.4.01.3200.
Força-Tarefa Amazônia – A ação civil pública que busca a suspensão do Decreto nº 10.084/19 foi proposta por procuradores da República que atuam no Amazonas e integram a Força-Tarefa Amazônia (FT Amazônia), criada em agosto de 2018, com o objetivo de atuar no combate à mineração ilegal, ao desmatamento, à grilagem de terras públicas e à violência agrária. Formada por procuradores da República lotados em estados da Amazônia Legal, a força-tarefa decorre de demandas da sociedade civil, expressas no Fórum Diálogo Amazonas, presidido pelo MPF no Amazonas com apoio dos procuradores da região.
O processo judicial é resultado das investigações promovidas pelo MPF em inquérito civil instaurado para apurar a licitude da liberação do plantio de cana-de-açúcar na Amazônia, diante de possíveis danos ambientais derivados da atividade e da não adoção de medidas para sua mitigação.