As mulheres foram as vítimas em 97% dos crimes de violência doméstica que chegaram aos Distritos Integrados de Polícia de Manaus. Foram mais de 24 mil Boletins de Ocorrência registrados no ano passado. Em 2019 já foram contabilizados 13 mil registros só no primeiro semestre. O número, apesar de elevado, mostra que as campanhas de conscientização e combate aos crimes contra a mulher estão surtindo efeito e ajudando a quebrar o silêncio de uma violência vivida, às vezes, por anos.
Mulheres que sofriam com a violência doméstica hoje podem contar com a ajuda de delegacias especializadas, atendimentos psicossociais e grupos de apoio, onde é possível encontrar outras vítimas que passaram pelo mesmo tormento, mas que atualmente estão se reerguendo e seguindo suas vidas de maneira saudável e independente.
A consultora tributária Djane viveu em um relacionamento abusivo por 13 anos e conta que os episódios de violência iniciaram quando ela ainda namorava o agressor. “Nós começamos a namorar em julho de 2000, e as agressões começaram uma semana depois. Ele me puxou pelo braço, puxou meu cabelo e saiu me puxando de dentro do local em que nós estávamos. Não lembro bem o porquê, eu só lembro que ele saiu me puxando, e todo mundo olhando”, disse.
Djane era agredida pelo então companheiro sempre que ele ficava nervoso com alguma situação. “Ele explodia, dava tapa, me puxava, gritava, e depois ficava todo manso, pedindo desculpa, perdão, que não era nada daquilo, e que era só um momento”, explicou.
Além das agressões físicas, Djane também passava por situações de violência psicológica. “Ele sempre dizia que eu ia morrer de fome, porque ele tinha diploma e eu não, dizia que ninguém ia me querer porque eu tinha seis filhos. Eu tive depressão na gravidez das minhas duas filhas, e foi nessa época, em 2008, que eu encontrei um grupo de apoio na internet que me ajudou a me libertar”, explicou.
Apesar de toda a violência sofrida, Djane conta que sair de um relacionamento é mais difícil do que se imagina, mas não é impossível. “No meu caso eu tinha uma vida com ele, e ela não era de todo má. Então foi um processo. Até um dia em que ele me agrediu de uma forma muito violenta, eu já tinha um filho adulto que presenciou isso, ele quebrou o meu nariz. Quando ele bateu, eu estava com uma roupa branca, que ficou toda manchada de sangue na mesma hora. Meu filho ficou desesperado e puxou uma faca para matá-lo. Depois disso ele ainda tentou voltar comigo, mas não aconteceu, e conseguimos nos libertar dele”, contou, aliviada.
Seis anos após conseguir sair do relacionamento abusivo, Djane ainda faz terapia, é formada em Artes, faz Mestrado em Cultura Popular na cidade de Aracaju (SE) e faculdade de Música.
“Existe vida após a agressão, existe felicidade também. Às vezes a felicidade não está só em um relacionamento romântico. No caso, a minha felicidade eu encontrei na minha pesquisa”, afirmou.
Marcas – A dona de casa Francisca Noronha da Nóbrega, de 58 anos, também passou por um drama parecido com o de Djane. Ela foi agredida pelo então marido por mais de 30 anos. “Desde o início, há 35 anos, eu vinha sofrendo. Eram facadas, no rosto, em todo o corpo. Tenho 58 pontos só na minha barriga de facadas que ele deu. Foi um sofrimento que eu não quero para a minha maior inimiga”, conta.
Francisca ainda disse que as agressões eram por motivos banais, como quando ela chegava em casa depois do horário que o agressor estipulava ou por uma comida de que ele não gostava.
“Hoje eu estou viva contando essa história porque eu dormia na Delegacia da Mulher. Eu pegava os meus filhos e dormia lá, porque ele dormia com um canivete, um terçado debaixo da cama”, relatou. Atualmente, Francisca está sob medida protetiva, mora com um dos filhos e recebe regularmente as visitas das guarnições do Ronda Maria da Penha.
Com Edicleide Fernandes de Almeida, a história foi um pouco diferente. A dona de casa de 44 anos era diariamente insultada e ameaçada pelo ex-genro. “A minha filha era muito jovem, ele tinha envolvimento com o tráfico, e eu não aceitava o relacionamento deles. Foi quando ele começou a ameaçar atear fogo na nossa casa, matar a minha filha. Ele invadiu a minha casa várias vezes”, relata.
Ela ainda contou que as ameaças evoluíram para agressões físicas. “Ele me bateu com a pá, jogou garrafa em mim, disse que ia atear fogo em mim e no meu marido. Tudo por vingança”, disse.
Após essa sequência de violência, Edicleide formalizou a denúncia contra o agressor e passou a receber visitas das guarnições do Ronda Maria da Penha. “Eles começaram a frequentar a nossa casa e nós passamos a ter um pouco de paz. Foi quando a medida protetiva chegou, e ele deu uma recuada”, enfatizou a dona de casa. Edicleide é uma das mais de 3 mil mulheres que estão sob medida protetiva no estado.
Tipos de violência contra a mulher – A Lei Maria da Penha traz no seu contexto cinco tipos de violência: a física, a psicológica, a patrimonial, a moral e a violência sexual. Apesar disso, muitas mulheres ainda encontram dificuldade de se enxergar como violadas em seus direitos.
“Ela acha que é algo inerente ao casamento, muitas vezes acredita que o marido tem o direito de fazer aquelas injúrias, aquelas humilhações, perseguições com ela, quebrar o telefone dela, por ser o marido. É de certa forma cultural, de tempos em que ensinaram o machismo passando para as mulheres e para os homens. Então a mulher se sente sem respaldo, até o dia em que ocorre a violência física”, explica Débora Mafra, delegada titular da Delegacia Especializada em Crimes Contra a Mulher (DECCM).
Ronda Maria da Penha – Atuando no acompanhamento das vítimas de violência doméstica, a Ronda Maria da Penha, da Polícia Militar, já atendeu mais de mil mulheres.
“As mulheres fazem o registro do Boletim de Ocorrência, solicitam a medida protetiva de urgência junto ao Poder Judiciário, e a partir deste momento passam a ser acompanhadas, recebem nossas visitas para saber se o agressor está cumprindo a medida protetiva”, explica a tenente Adriane Oliveira, comandante do Ronda Maria da Penha.
Caso o agressor não esteja cumprindo a medida protetiva, é solicitada, junto à Delegacia da Mulher, a prisão preventiva deste agressor. As visitas são realizadas até que a vítima se sinta segura, sem importunações.
Denúncias – As vítimas de violência doméstica podem procurar qualquer um dos Distritos Integrados de Polícia na capital e interior. Em Manaus, existem três unidades especializadas no atendimento de violência doméstica.
A DECCM fica localizada na avenida Mário Ypiranga Monteiro, no conjunto Eldorado, bairro Parque 10 de Dezembro, na zona centro-sul da capital, que funciona 24h. O anexo da especializada fica localizado na rua Santa Ana, bairro Cidade de Deus, zona norte de Manaus, e a nova unidade no anexo da zona sul, que fica na rua Felismino Soares, bairro Colônia Oliveira Machado.
Em situações de emergência, a mulher, um familiar ou qualquer vizinho pode ligar para o 190. Mulheres com medidas protetivas contam com o aplicativo “Alerta Mulher”, que faz o monitoramento por GPS e garante atendimento mais célere. Também é possível falar com a Ronda Maria da Penha pelo número (92) 8842-2258.