No primeiro semestre de 2019, o Senado iniciou uma agenda de aprimoramento do pacto federativo brasileiro. Entre reuniões com governadores e deliberações de algumas matérias, os senadores tentaram construir as bases para atacar o tema com mais foco no segundo semestre, após a conclusão da reforma da Previdência.
O pacto federativo é o arranjo entre União, estados, Distrito Federal e municípios para organizar as obrigações e prerrogativas tributárias entre eles, tendo em vista a distribuição justa e eficiente dos recursos nacionais. O assunto tem relevância especial no Senado porque a Casa é considerada a mesa de negociação entre as unidades da federação, já que todos os estados têm a mesma representação.
Apesar do alto nível de interesse interno, o pacto federativo ficou em segundo plano nos primeiros meses do ano, diante da urgência dada à reforma previdenciária. Segundo alguns parlamentares, atritos políticos remanescentes das eleições também contribuíram para isso.
Projetos
Em abril, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, compareceu à 22ª Marcha dos Prefeitos, evento que reúne em Brasília (DF) os chefes dos Executivos municipais. Ele discursou a favor da descentralização dos recursos e do poder decisório:
— Em minha opinião, devemos sempre priorizar iniciativas que desburocratizem e tornem mais eficientes o repasse de verbas da União.
Na ocasião, Davi destacou duas propostas de emendas à Constituição (PECs) que estavam nas mãos do Senado e poderiam, segundo ele, ajudar nesse objetivo. Uma delas foi a PEC 61/2015, que permite a transferência direta de recursos federais para estados e municípios, através de emendas parlamentares individuais ao Orçamento. Ela foi aprovada pelo Plenário no mesmo dia da Marcha, e remetida para a Câmara dos Deputados, que ainda precisa analisá-la.
A segunda medida pinçada pelo presidente do Senado foi a PEC 34/2019, que torna obrigatória a execução de parte das emendas orçamentárias aprovadas pelas bancadas parlamentares estaduais e que havia sido aprovada na semana anterior. Promulgada no fim de junho, a regra se tornou a centésima emenda à Constituição Federal.
O relator da PEC no Senado foi Esperidião Amin (PP-SC). O parlamentar destaca que, na sua origem, a proposta trazia uma ideia ainda mais radical, que, segundo ele, deve ser retomada pelo Congresso no futuro: o orçamento impositivo, ou seja, a obrigação de que o Executivo cumpra a lei orçamentária da forma como ela for aprovada pelo Legislativo.
— Com isso, o Legislativo ganharia responsabilidade, não só autoridade. Deve tomar muito cuidado com a formulação do Orçamento e acompanhar atentamente a sua execução. Isso faz parte do amadurecimento do nosso sistema democrático – afirmou.
Para Esperidião Amin, essa Emenda Constitucional é justa porque fortalece a destinação eficiente do dinheiro à sua finalidade nos estados e municípios. O ministro da Economia, Paulo Guedes, compartilha dessa visão. Ao participar de audiência na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) no final de março, quando a PEC foi enviada ao Senado, Guedes disse que “tomou um susto” com a aprovação que não estava no radar, mas que via nela um empoderamento dos representantes políticos da população.
— Eu não gosto do carimbo, mas, já que é para ser carimbado, que seja por alguém que foi votado lá embaixo, não pelo governo central. Ninguém mais legítimo para gastar o dinheiro do que um deputado eleito, muito mais do que qualquer ministro — validou Guedes.
Outra decisão tomada pelo Senado neste semestre que diz respeito ao pacto federativo foi a aprovação do projeto que reabre o prazo para que estados possam aderir ao plano que prevê o refinanciamento das dívidas com a União (PLS 163/2018). Serão seis meses adicionais para que os estados entrem na renegociação, que havia sido encerrada no fim de 2017.
O projeto era do senador José Serra (PSDB-SP). Na sua versão original, apenas excluía o pagamento de precatórios (débitos públicos transitados em julgado) do teto de crescimento das despesas correntes anuais dos estados. No entanto, a versão aprovada foi um substitutivo do relator, Otto Alencar (PSD-BA), que trocou a ressalva dos precatórios pelo novo prazo. Foi incluída também uma “válvula de escape” para o teto: caso o crescimento das despesas ultrapasse o limite previsto, os estados terão um tempo para eliminar o excedente (final do terceiro exercício financeiro após a celebração de aditivo).
Novos rumos
Outras medidas do Senado, consideradas mais importantes para enfrentar os desequilíbrios federativos, contudo, ficaram para os próximos meses.
Para o senador Esperidião Amin, as disputas ideológicas que marcaram o período eleitoral transbordaram para o início dos trabalhos do parlamento, preenchendo a pauta de debates e votações com outros assuntos. Mesmo assim, acredita ele, o Senado está em boa posição.
— O primeiro semestre foi muito marcado em temas de costumes, não foi um semestre altamente propositivo, mas o Senado trabalhou. Debateu de forma fragmentada a questão do pacto, não sistematicamente, mas vai dar um passo firme no segundo semestre.
O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) também critica o direcionamento das prioridades, especialmente no que se deveu a iniciativas do governo – como o decreto do porte de armas ou ações dos ministérios.
— Nunca votamos tanto e discutimos tanto, mas a pauta do Executivo atrapalhou.
Randolfe é autor de um projeto que sinaliza para o futuro do pacto federativo dentro do Senado. A PEC 65/2019 torna permanente o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), cuja vigência se encerra no ano que vem.
A manutenção do Fundeb interessa sobremaneira a estados e municípios, porque é deles a responsabilidade sobre a rede pública do ensino fundamental e do ensino médio. Sem o dinheiro do Fundeb, que tem contribuições da União, a arrecadação desses entes, por si só, não consegue sustentar a estrutura.
— É o Congresso se preocupando com o que o governo não está se preocupando. O Fundeb é a principal fonte de financiamento da educação pública brasileira hoje, e o governo não está nem aí que ele vai acabar no ano que vem – alerta Randolfe.
Também contribuiu para tirar espaço do pacto federativo a discussão da reforma da Previdência, que também envolvia articulação com os estados. O Senado alinhou a sua atuação com os governadores a partir de um encontro, realizado no início de maio, que reuniu os mandatários ou vices de 25 estados. A consolidação do apoio dos governadores à reforma se manifestou, mesmo que de forma discreta, durante a votação da matéria pela Câmara dos Deputados na última semana de atividades. A negociação por esse posicionamento envolveu uma lista de demandas entregue ao ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que também esteve presente:
Carta do fórum de governadores aos chefes do Executivo e Legislativo |
Os governadores dos estados e do Distrito Federal, considerando a necessidade de assegurar a estabilidade financeira dos entes federados, visando à promoção do desenvolvimento social em todas as regiões do Brasil, decidem: |
* Reivindicar a implementação imediata pelo governo federal de um plano abrangente e sustentável que restabeleça o equilíbrio fiscal dos estados e do Distrito Federal, a exemplo do já aventado Plano Mansueto; |
* Reiterar a importância fundamental de assegurar aos estados e ao Distrito Federal a devida compensação pelas perdas na arrecadação tributária decorrentes da desoneração de exportações, matéria regulamentada na “Lei Kandir”; |
* Defender a manutenção do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – Fundeb, permanente e dotado de status constitucional que atenda às reais necessidades da população brasileira no tocante à educação; |
* Pleitear a regularização adequada da “securitização” de créditos dos estados e do Distrito Federal, visando ao fortalecimento das finanças desses entes federados; |
* Requerer a garantia de repasses federais dos recursos provenientes de cessão onerosa/bônus de assinatura aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios; |
* Apoiar o avanço urgente da Proposta de Emenda à Constituição nº 51/2019 que “altera o art. 159 da Constituição para aumentar para 26% a parcela do produto da arrecadação dos impostos sobre a renda e proventos de qualquer natureza e sobre produtos industrializados destinada ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal e dá outras providências. ” |
Na mesma reunião, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, explicou o porquê de a reforma da Previdência se colocar como uma prioridade no momento. Segundo ele, a aprovação da proposta garante a estabilidade econômica, que deve preceder a reestruturação do pacto federativo.
— Se queremos efetivamente distribuir a arrecadação, primeiro precisamos ter arrecadação. Por isso a importância da reforma da Previdência, num processo de reequilíbrio das contas do Estado, mas que a gente possa, em paralelo a ela, discutir [os interesses dos estados].
Na ocasião, o entendimento que prevaleceu foi de que um novo desenho do pacto federativo é imprescindível para garantir a sustentabilidade da prestação dos serviços públicos. O governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, resumiu a preocupação dos seus pares:
— Quem presta efetivo serviço à população são governadores e prefeitos. Isso é um entendimento do governo. Precisamos dar os rumos tanto às reformas do governo federal quanto àquelas que são necessárias aos estados e municípios.
Davi Alcolumbre também falou em “inverter a pirâmide”: mudar a lógica de concentração excessiva de arrecadação na União, o que burocratiza ao extremo a distribuição dos recursos e penaliza estados e municípios. Pensando nisso, o presidente do Senado apresentou, nos últimos dias do semestre, uma proposta de reforma tributária, sobre a qual o Senado deve se debruçar com mais afinco no segundo semestre.
O texto (PEC 110/2019) tem como base uma proposta já existente, em análise na Câmara dos Deputados há 15 anos e aprovada em comissão especial em dezembro. Essa proposta acabou preterida pelos deputados em favor de um novo texto, apresentado neste ano. Davi Alcolumbre preferiu não perder o trabalho realizado sobre a proposta antiga, e ela agora começará a tramitar no Senado, que se torna também a primeira casa revisora. O relator será o senador Roberto Rocha (PSDB-MA).
A PEC extingue oito tributos federais (IPI, IOF,CSLL, PIS, Pasep, Cofins, Salário-Educação e Cide-Combustíveis), o ICMS (estadual) e o ISS (municipal). No lugar deles, serão criados um imposto de competência estadual sobre o valor agregado, chamado de Imposto sobre Operações com Bens e Serviços (IBS), e um imposto de competência federal sobre bens e serviços específicos, o Imposto Seletivo.
— Não tenho dúvidas que o Senado da República, como Casa da Federação, terá a consciência da importância dessa votação para destravarmos a economia, desburocratizarmos a vida dos brasileiros e simplificarmos as relações em um Estado de dimensões continentais, com muitas portarias, muitos decretos, muitas legislações, uma em cada estado, que enlouquecem a vida dos brasileiros – disse Davi, ao anunciar em Plenário a apresentação da proposta, que contou com o apoio de outros 65 senadores, 80% da composição do Senado.
Ao comentar a iniciativa, o senador Esperidião Amin destaca que, assim como em tudo que se refere ao pacto federativo, cabe ao Senado a primazia de liderar a reforma tributária. As contribuições da Câmara são bem-vindas, segundo ele, mas a responsabilidade maior cabe aos senadores.
— O Senado é a casa da federação. Não estamos usurpando uma atribuição da Câmara, estamos consagrando uma atribuição nossa. A Câmara ocupou um espaço vazio, mas é natural que nós comecemos o processo. Não é uma jactância, é o nosso dever.
Esperidião Amin acredita que o Senado resolverá rapidamente a sua parte na reforma da Previdência, que deve chegar à Casa entre julho e agosto. Depois disso, o semestre será dedicado essencialmente à discussão tributária.
Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)