No trabalho, Mariah Silva demonstra como o elo entre o racismo e a transfobia é prejudicial à democracia
Fomentar reflexões sobre algumas formas estruturais e institucionais de discriminação contra pessoas transexuais no Brasil. Este é objetivo do ensaio “código da ameaça: trans – classe de risco: preta”, produzido pela egressa do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade do Estado do Amazonas (PPGICH/UEA), mestra Mariah Rafaela Silva.
Publicado pela editora N-1 Edições, o trabalho contribui com o meio pedagógico ao chamar a atenção de parte da sociedade para os modos de violação aos quais travestis e transexuais estão submetidas, além de demonstrar como o elo entre o racismo e a transfobia é nocivo à democracia e ao processo de promoção de cidadania dessas pessoas.
De acordo com dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e do projeto de monitoramento do assassinato de pessoas trans da ONG europeia TGEU, o Brasil é o país onde mais se matam pessoas travestis e transexuais, e 82% das pessoas assassinadas são negras e pardas. Ainda segundo a Antra, o número de homicídios de pessoas trans aumentou cerca de 40% em relação ao mesmo período do ano passado, mesmo durante a pandemia causada pela Covid-19, quando se acreditava que tais índices teriam queda.
Segundo a autora do ensaio, o trabalho é importante por considerar que, em tempos de Covid-19, conservadorismo e radicalismos políticos, atentar para a urgência de se repensar os rumos que a democracia tomou, colocando em risco a sobrevivência de grupos que nunca fizeram efetivamente parte da sociedade, tampouco da universidade.
O ensaio também cobra do leitor um exercício crítico, convidando-o a analisar o envolvimento no processo de produção de distorções sociais, tendo em vista que o texto começa questionando a cisgeneridade. “Meu interesse é demonstrar à sociedade que devemos estar atentos às formas de violência contra aquilo que inventamos como diferente, desde os níveis mais sutis, que podemos classificar como nanotransfobia, aos níveis mais visíveis, como as mortes e ausência dessas pessoas na vida social como um todo”, afirmou Mariah.
A egressa do PPGICH/UEA comenta também que busca incluir, na tese que está desenvolvendo para o doutorado em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), o fato de que, aparentemente, a sociedade se acostumou a ver as pessoas trans como “sombras” nas esquinas das ruas em noites, com a chacota mascarada de “brincadeirinha” e com os que as procuram para saciar desejos reprimidos e são incapazes de assumi-las em um relacionamento sério, seja por não compreenderem a diferença entre gênero e sexualidade ou pelo tabu e pelo estigma gerado em torno desses corpos “míticos”.
Ao saber da pouca quantidade de pessoas trans nos espaços acadêmicos, a doutoranda salienta que ocupar esses espaços torna-se fundamental não apenas pela possibilidade de empoderamento pessoal, mas pela chance de um projeto de sociedade verdadeiramente democrático, inclusivo e anticolonial.
“O meio acadêmico ainda é um espaço hostil por refletir uma sociedade que bebe nas valas coloniais da nossa história. Contudo, é um espaço que vem se abrindo, ainda que lentamente, para outras experiências e corpos não hegemônicos, graças a uma corrente acadêmica que vem questionando os paradigmas da branquidade, cisnormatividade, heteronormatividade e dos privilégios de classe e território”, enfatiza.
Na dissertação do mestrado do PPGICH/UEA, “Corpos antropofágicos: supermáquina e intersseccionalidades em cartoescrita de fluxos indisciplinares”, a historiadora buscou identificar alguns efeitos da herança colonial para as políticas de gênero e sexualidade no Brasil. “Embora o título seja um tanto confuso, os objetivos são bem nítidos: lançar luzes sobre as violências que são produzidas contra pessoas trans racializadas numa sociedade com fantasia de privilégio”, explica.
“A UEA é um lugar que guardarei sempre com carinho nas minhas recordações, a começar pelas amizades que tive o privilégio de construir, a lembrança da dedicação dos professores e a diversidade étnica presente no corpo discente. Contribuiu como um rito de passagem entre dois momentos distintos de minha vida e me ajudou a ser quem eu sou hoje”, concluiu Mariah, ao relembrar do período como aluna do PPGICH da UEA.
O ensaio “código da ameaça: trans – classe de risco: preta” pode ser conferido no site da N-1 Edições, por meio do link: https://n-1edicoes.org/123.
Sobre a autora – Mariah Rafaela Silva é mulher trans negra, ativista e colaboradora do Grupo Conexão G de Cidadania LGBT de Favela. Atualmente, é professora substituta da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde se graduou. É Mestre em Ciências Humanas (Teoria, História e Crítica da Cultura) pela UEA e cursa Doutorado em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF).