Geral
18 de Setembro de 2019 às 10h50
Por negligência, entes públicos têm que indenizar e recuperar danos da mineração ilegal de ouro, defende MPF
MPF acusa União, Agência Nacional de Mineração e Banco Central de serem omissos na tomada de medidas contra ilegalidades da cadeia econômica
Área de garimpo ilegal em que Ibama desativou máquinas de mineração na Terra Indígena Munduruku, no Pará, em maio de 2018 (créditos: Vinícius Mendonça/Ibama, em licença CC BY-SA 2.0, via Flickr)
O Ministério Público Federal (MPF) pediu à Justiça que, em conjunto com um grupo responsável por fraudes no comércio de ouro no sudoeste do Pará, a União, a Agência Nacional de Mineração (ANM) e o Banco Central (BC) sejam obrigados a recuperar a área degradada e a indenizar povos indígenas e a sociedade em geral. O grupo de fraudadores é acusado de incentivar a extração ilegal do ouro, e os entes públicos são acusados de terem sido omissos na tomada de medidas para evitá-la e combatê-la.
Os pedidos foram feitos na ação civil pública ajuizada pelo MPF neste segundo semestre de 2019 com base em provas e dados coletados durante três anos pela instituição e pela Polícia Federal (PF). A investigação inédita esmiuçou o funcionamento de uma das maiores empresas compradoras de ouro na bacia do rio Tapajós, o maior polo da mineração ilegal no Brasil.
O MPF pede à Justiça que todos os réus – os responsáveis por um posto de compra de ouro da empresa Ourominas em Santarém (PA), a Ourominas, a União, a ANM e o BC – sejam obrigados a indenizar a sociedade pelos danos ambientais decorrentes da compra de ouro extraído em garimpos ilegais, e que também sejam obrigados a recuperar as áreas degradadas, a serem indicadas pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
O MPF também pediu que todos os réus paguem indenização moral coletiva em valor a ser destinado ao Fundo dos Direitos Difusos e aos povos indígenas cujos territórios sejam alvo da atividade garimpeira ilegal e estejam localizados nas bacias dos rios Tapajós e Jari, com intermédio da Funai, inclusive mediante consulta prévia, livre e informada, nos termos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
No primeiro semestre, o MPF já havia pedido à Justiça Federal, na ação criminal do caso, que os responsáveis pelo posto de compra e a Ourominas sejam condenados a pagar à União pelos prejuízos provocados. Só entre 2015 e 2018, o grupo fraudou a compra de 610 quilos de ouro, causando um prejuízo de R$ 70 milhões aos cofres públicos. E esse prejuízo pode ser muito maior, tendo em vista que o valor foi calculado com base nas indicações das notas fiscais, que são preenchidas apenas pelos criminosos, com indicações bem inferiores ao valor de mercado.
Prejuízos socioambientais – Segundo parecer elaborado por peritos da Secretaria de Perícia, Pesquisa e Análise (Spea) do MPF, documento publicado nesta segunda-feira (16), o valor dos prejuízos socioambientais causados pela extração de cada quilo de ouro pode ser de oito a quinze vezes maior que o valor da cotação de mercado do quilo do minério neste setembro de 2019. Para cada quilo de ouro extraído ilegalmente, os prejuízos socioambientais podem ser de R$ 1,7 milhão a R$ 3 milhões, dependendo do tempo estimado para recuperação, ainda que parcial, da área degradada pelo garimpo.
O parecer, fundado em ferramentas econômicas de valoração de danos ambientais, analisa o impacto causado pelo garimpo de ouro na Floresta Amazônica e as perdas decorrentes dessa atividade, que abrangem desde o desmatamento e a inviabilização da exploração sustentável das matas, mediante extração de produtos madeireiros e não madeireiros, até a desestruturação de serviços ecossistêmicos, como regulação climática, oferta de água e manutenção da biodiversidade.
Segundo o parecer, o método de lavra a céu aberto, usado pela maioria das minas de minerais metálicos, provoca impactos consideráveis no nível fisionômico, químico, biológico e humano. “Desmatamento, destruição da fauna e da flora locais, alterações físico-químicas dos leitos aquáticos e poluição com insumos químicos utilizados na mineração estão entre os principais danos ocasionados”, assinala o MPF no documento.
Só em quantidade de sedimentos lançados nas águas do Tapajós, por exemplo, a mineração ilegal de ouro despeja 7 milhões de toneladas por ano, de acordo com laudo elaborado pela PF e pela Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). A cada 11 anos, a quantidade de sedimentos despejados é equivalente à barragem da Samarco que rompeu em Mariana (MG) em 2015, destruindo a calha do rio Doce, entre Minas Gerais e Espírito Santo.
O estudo técnico do MPF considera, ainda, o valor existencial intrínseco que pode ser economicamente conferido às espécies não-humanas.
O parecer foi feito a pedido da força-tarefa Amazônia do MPF, que também elaborou um manual de atuação da instituição para o combate à mineração ilegal, documento citado pela primeira vez nas ações ajuizadas a partir das investigações das transações feitas no posto de compra da Ourominas em Santarém.
Danos do mercúrio – Os peritos do MPF deram ênfase especial aos danos gerados pelo uso de mercúrio. Sobre o tema, o estudo aponta que o metilmercúrio é associado a danos cerebrais, com potencial de perda de inteligência e retardo mental, e cita o caso da comunidade ribeirinha São Luiz do Tapajós, em Itaituba (PA), onde 80% das crianças apresentaram redução de quociente de inteligência (QI) relacionada à contaminação dos recursos naturais pela atividade garimpeira do entorno, segundo pesquisa publicada ainda nos anos 90 pelos pesquisadores Elisabeth Santos, Iracina de Jesus, Edilson Brabo, Edvaldo Loureiro, Artur Mascarenhas, Judith Weirich, Volney Câmara, e David Cleary.
O mercúrio é usado na purificação do ouro. Os resíduos contaminam a água e o ar. Devolvido à natureza como metilmercúrio, esse elemento causa um dano grave e altamente tóxico graças à acumulação permanente. O composto afeta o sistema nervoso central, causando problemas de perda de visão, de ordem cognitiva e motora, doenças cardíacas e outras deficiências, alertam os pesquisadores da Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (Raisg) no relatório “Amazônia Saqueada”.
“As cicatrizes na terra, as águas turvas dos rios são danos óbvios da mineração ilegal. Mas há um mal invisível que contamina a fauna amazônica e os habitantes da região. O mercúrio, de acordo com diferentes estudos, está afetando populações indígenas e locais que vivem perto ou trabalham em áreas de mineração de ouro, bem como aqueles que consomem peixe da Amazônia como parte de sua dieta”, resumem os especialistas da Raisg, que reúne técnicos de seis países da Amazônia. Eles representam oito organizações da sociedade civil que atualizam constantemente bancos de dados sobre as principais ameaças à região amazônica.
Há estimativas de que até 221 toneladas de mercúrio são liberadas por ano para o meio ambiente pela mineração ilegal no Brasil, indicam estudos preliminares apresentados em 2018 na primeira reunião do Grupo de Trabalho Permanente da Convenção de Minamata sobre Mércurio (GTP-Minamata), realizada pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA).
A Convenção de Minamata é um acordo global para controlar o uso do mercúrio, tendo em vista a letalidade da substância para a saúde humana e para o meio ambiente. Em agosto de 2018, foi publicado decreto presidencial que concluiu a internalização jurídica, pelo Brasil, da Convenção. Com a promulgação do decreto, as determinações da Convenção de Minamata tornaram-se compromissos nacionais oficiais.
Contaminação em indígenas – Neste segundo semestre de 2019, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) chamou atenção para os dados preliminares de uma pesquisa inédita que revela a contaminação por mercúrio em mulheres e crianças Yanomami, das aldeias de Maturacá e Ariabu, localizadas na região de Maturacá, no estado do Amazonas. De acordo com o estudo, que analisou amostras de cabelo de quase 300 indivíduos, 56% dos indígenas apresentaram concentrações de mercúrio acima do limite estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que é de dois microgramas por grama (ou ppm). Em 4% da população analisada havia concentrações acima de seis microgramas por grama, considerado o limite para o surgimento de efeitos adversos à saúde. A partir dessa concentração de mercúrio no cabelo, aumentam as chances de surgirem danos neurológicos graves, destaca o material de divulgação da pesquisa.
Uma criança indígena de apenas três anos chegou a apresentar 13,87 microgramas por grama, cerca de sete vezes mais mercúrio que o limite preconizado pela OMS (2,0 ppm) e o dobro da concentração limite para o surgimento de efeitos adversos à saúde (6,0 ppm). “No caso de crianças pequenas, de meses a três anos, por exemplo, a exposição ao mercúrio pode estar associada ao consumo de leite materno (que também pode conter mercúrio caso a mãe se alimente de peixes contaminados), mas também pode ser reflexo da exposição intrauterina”, aponta a professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Ana Claudia Vasconcellos, especialista em mercúrio.
“A pessoa na vida sabe de alguns nomes de doenças e de outros desconhecidos. Algumas doenças são curáveis e outras não. Mas não se sabe quando vai ser atingido. Melhor seria se proteger com vacina. Mas os desconhecidos atingem alguém, leva-se tempo para se desenvolver a solução, mas que deixa cicatrizes para sempre. Não dá para indicar remédio enquanto você não é atingido pela doença, enquanto você não faz diagnóstico depois que a doença te ataca. Portanto, deverá ser caso a caso, um processo, por isso mesmo deveria nem ser mexido, pois o minério é a fonte de doenças e muitas doenças”, disse um dos indígenas entrevistados pelas pesquisadoras Ana Catarina Zema de Resende e Suliete Gervásio Monteiro no estudo Percepções Indígenas sobre a mineração no Médio Rio Negro, no Amazonas, publicado este mês.
Ponta de um iceberg – “A contaminação mercurial é a ponta de um iceberg de problemas. É um dos sintomas de uma cadeia de alterações e ambientais e desestruturações sociais e culturais”, explica o médico neurocirurgião Erick Jennings, da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde.
Os garimpeiros ilegais estão em busca de enriquecimento rápido, a todo custo, e esse modo de viver entra em choque com o modo de vida dos povos indígenas e das comunidades tradicionais. Para dominar a população local, esses invasores usam dois métodos: o aliciamento ou a intimidação, com o uso de ameaças e violência física, explica Jennings.
A contaminação por mercúrio é um reflexo dessa destruição maior. O peixe, que era a garantia de proteína e saúde, passa a ser sinônimo de doença, e acaba sendo trocado por alimentos enlatados. “O indígena se vê entre dois venenos: ou o peixe contaminado por mercúrio, ou esses alimentos com altas quantidades de sódio e de corantes”.
Na região do Tapajós, já foram detectadas alterações cardiológicas e neurológicas em pessoas que têm alto nível de metilmercúrio, relatou o médico em audiência pública realizada em abril deste ano pela Câmara dos Deputados. A constatação foi de pesquisa realizada pela professora Heloísa de Moura Meneses, do Instituto de Saúde Coletiva (Isco) da Ufopa.
Jennings destacou que não há cura para esses problemas originados pela contaminação por mercúrio, e que as pesquisas da professora Heloísa de Moura Meneses indicaram que a contaminação tem afetado até mesmo moradores de áreas urbanas distantes da região de garimpo, como os moradores de Santarém, um dos municípios mais populosos do Pará, com cerca de 300 mil habitantes.
Uma das lideranças indígenas presentes na audiência pública da Câmara dos Deputados, Alessandra Korap, da etnia Munduruku, denunciou que as crianças estão reclamando de dores e que as mulheres grávidas estão sofrendo abortos espontâneos, algo que não acontecia nas aldeias. Segundo o neurocirurgião Erick Jennings, o metilmercúrio consegue atravessar a placenta, podendo causar danos irreversíveis ao feto.
Para pesquisadores do Ministério da Saúde e da Ufopa ouvidos por deputados federais, o monitoramento clínico e laboratorial das populações submetidas à contaminação de mercúrio na bacia do Tapajós deve ser classificado como “urgência sanitária”.
Demais pedidos da ação – Na ação civil pública, o MPF também pediu à Justiça Federal que obrigue a União e a ANM a informatizarem o sistema de controle da cadeia econômica do ouro no país, a fiscalizar o uso das licenças simplificadas para garimpos, e a definir quem pode ter acesso a essas licenças. Também foi pedido que o BC apresente à Justiça e execute plano de implantação de medidas administrativas que garantam um maior controle da custódia do ouro adquirido pelas Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVMs) e pelos Postos de Compra de Ouro (PCOs).
O MPF pediu, ainda, que a União, a ANM e o BC sejam obrigados a apresentarem à Justiça um conjunto de ações de combate à extração e comercialização de ouro ilegal, e relatórios com informações sobre todas as medidas tomadas, nos últimos cinco anos, para combater a comercialização ilegal do minério.
Série – Desde o final de julho, o MPF está publicando uma série de notícias para resumir como as várias fragilidades do sistema de controle da cadeia do ouro possibilitam a atuação de organizações criminosas como a denunciada pela instituição e geram prejuízos financeiros, sociais e ambientais de proporções devastadoras.
Também estão sendo descritos os pedidos feitos pelo MPF à Justiça relativos às instituições públicas e às empresas processadas.
Este é o sétimo e último texto da série. Os anteriores podem ser acessados pelos links abaixo.
O conteúdo integral das ações, com todos os detalhes disponíveis, estão nos seguintes links:
Ação cível: processo nº 1003404-44.2019.4.01.3902 – 2ª Vara da Justiça Federal em Santarém (PA)
Ação criminal: processo nº 0000244-28.2019.4.01.3902 – 2ª Vara da Justiça Federal em Santarém (PA)
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