Direitos do Cidadão
31 de Julho de 2019 às 17h5
PGR propõe ADPF contra decreto que esvazia Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura
Para Raquel Dodge, norma que retira cargos e remuneração de peritos de unidades prisionais e de internação fere preceitos como dignidade humana
Foto: Antonio Augusto/Secom/PGR
A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, solicitou ao Supremo Tribunal Federal (STF) que suspenda a eficácia e declare inconstitucional o Decreto 9.831/2019 que retirou os 11 cargos de perito destinados ao Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT). Os pedidos constam de Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), protocolada nesta quarta-feira (31). Para a PGR, ao remanejar os cargos para o Ministério da Economia, exonerar os ocupantes e tornar a participação no MNPCT não remunerada, o decreto – editado em junho – invade competência legislativa e afronta o princípio da legalidade (decreto regulamentar não pode alterar estrutura de órgão criado por lei). Instituído em 2013, o MNPCT atende a compromisso internacional assumido pelo Brasil no combate à tortura. O trabalho é desenvolvido a partir de visitas regulares a locais de privação de liberdade em todo o território nacional e inclui a elaboração de relatórios e a expedição de recomendações vinculantes aos órgãos competentes.
Na petição, Raquel Dodge afirma que o ato presidencial causa lesão aos preceitos fundamentais como a dignidade humana (classificada na Constituição Federal como princípio fundamental da República Federativa do Brasil) e aos princípios da legalidade e da vedação à tortura. Conforme destacou, a manutenção dos cargos em comissão ocupados pelos peritos do MNPCT “é essencial ao funcionamento profissional, estável e imparcial do referido órgão que, por sua vez, é indispensável ao combate à tortura e demais tratamentos degradantes ou desumanos em ambientes de detenção e custódia coletiva de pessoas”. Frisou ainda que a garantia de remuneração do trabalho “está intrinsecamente relacionada ao desempenho imparcial dessas atribuições, sob pena de esvaziamento e parcialidade da atuação do órgão”.
A procuradora-geral afirma, no documento, que o decreto presidencial é objeto de duas ações civis públicas e de uma ação popular apresentadas em primeira instância e que aguardam decisão judicial. Os processos tramitam no Distrito Federal, Rio de Janeiro e Campinas (SP). “Até o presente momento, não houve pronunciamento de nenhum dos juízos suscitados sobre os pedidos de suspensão cautelar dos efeitos do Decreto 9.831/2019, que permanece em vigor, acarretando risco de perecimento de direitos. Esse fato reforça a necessidade de urgente pronunciamento desta Suprema Corte para sustar a ameaça de lesão aos preceitos fundamentais elencados nesta ADPF”, pontua.
Resultados – Ao frisar a importância da atuação do MNPCT, Raquel Dodge menciona resultados numéricos do trabalho realizado nos últimos anos. Dados do extinto Ministério de Direitos Humanos revelam que, entre 2015 e 2019, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura emitiu 2.077 recomendações em relatórios de visitas feitas a 20 estados. Os peritos estiveram em 169 unidades de privação de liberdade, sendo 50 prisões, 46 hospitais psiquiátricos, 31 comunidades terapêuticas, 28 unidades socioeducativas, seis Institutos Médico-Legais (IMLs), cinco hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico e três Instituições de Longa Permanência para Idosos.
A procuradora-geral lembra ainda que a Lei 12.847/2013 determina que a seleção de projetos a serem financiados com recursos do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen), do Fundo Nacional de Segurança Pública, do Fundo Nacional do Idoso e do Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente deverá levar em conta as recomendações formuladas pelo MNPCT. Em consequência dessa exigência, em 2017, o MNPCT publicou o relatório temático Funpen e Prevenção à Tortura: as ameaças e potenciais de fundo bilionário para a prevenção à tortura no Brasil. O documento traz 47 recomendações sobre a gestão e o emprego das verbas do Funpen.
A petição, assinada por Raquel Dodge, traz dados oficiais do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre a situação do sistema prisional brasileiro. De acordo com o CNJ, atualmente são 812,5 mil pessoas presas, sendo que 41,5% sem sentença condenatória. O documento cita rebeliões registradas entre 2017 e 2019 em unidades prisionais de estados como Pará, Amazonas, Paraíba, Rio Grande do Norte e Roraima. Apenas nestes casos, foram 234 mortes. “O MNPCT, desde sua primeira missão, vem identificando práticas de tortura e de tratamento cruel, desumano e degradante em todas as unidades visitadas. Seus relatórios, sempre com metodologia conhecida, são minuciosos na descrição das situações encontradas”, defende.
Direitos humanos – A procuradora-geral enfatiza que um dos dos princípios gerais de direito que regem a proteção dos direitos humanos é a proibição de retrocesso, “sendo permitido apenas aprimoramentos e acréscimos no âmbito da proteção existente. O Decreto 9.831/2019, ora impugnado, tem evidente caráter regressivo do ponto de vista institucional, na medida em que esvazia significativamente, pelas razões já expostas, o MNPCT, órgão essencial para o combate à prática de tortura e demais tratamentos degradantes ou desumanos em ambientes de detenção e custódia coletiva de pessoas, ao transformar o mecanismo, outrora profissional e permanente, em trabalho voluntário e precário”.
Ainda sobre esse aspecto, a ADPF menciona que a preocupação em impedir e prevenir a prática de tortura e de outros tratamentos desumanos ou degradantes traduziu-se, além da Constituição, em inúmeros atos no âmbito do direito internacional dos direitos humanos. São citadas a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, assinada em Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1984, e promulgada pelo Decreto 40, de 15 de fevereiro de 1991; a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, promulgada pelo Decreto 98.386, de 9 de dezembro de 1989; a adesão ao Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, promulgada pelo Decreto 4.388, de 25 de setembro de 2002; e a promulgação do Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, pelo Decreto 6.085, de 19 de abril de 2007.
Em relação ao Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, a PGR enfatiza que o instrumento foi citado de forma expressa na Lei 12.847/2013, que criou o MNPCT. Ela lembra que o protocolo teve o propósito de estabelecer medidas adicionais para reforçar a proteção de pessoas privadas de liberdade contra a tortura e outros tratamentos e penas cruéis, desumanos ou degradantes. Para a PGR, diante do ordenamento jurídico se impõe a conclusão de que o Brasil, nacional e internacionalmente, tem o compromisso de efetivar, da forma mais eficaz possível, a prevenção e o combate à tortura e a outros tratamentos desumanos ou degradantes e, para tanto, deve contar com mecanismos de garantia da independência funcional e de seu pessoal.
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