Sistema Prisional
2 de Setembro de 2019 às 15h35
MPF recomenda apuração de denúncias de prática de tortura pela Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária no PA
Relatos indicam a ocorrência de uma série de violações a normas nacionais e internacionais no tratamento dos presos
Fotos publicadas pelo MPF na recomendação
Ministério Público Federal (MPF) encaminhou nesta segunda-feira (02) recomendação a autoridades para que sejam instaurados procedimentos a fim de apurar relatos de tortura, maus tratos e tratamento desumano, cruel e degradante por integrantes da Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIP) ou outros agentes públicos no complexo penitenciário de Americano, no município de Santa Izabel (PA), na região metropolitana de Belém. Se forem confirmadas as denúncias, o MPF recomenda a responsabilização administrativa dos culpados.
A recomendação foi encaminhada ao diretor-geral do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), Fabiano Bordignon, ao coordenador institucional da FTIP no Pará, Maycon César Rottava, e ao secretário Extraordinário de Estado para Assuntos Penitenciários no Pará, Jarbas Vasconcelos.
O documento estabelece prazo de 15 dias para resposta, contados da data do recebimento. O MPF aguarda um posicionamento sobre o acatamento ou não da recomendação e sobre as providências concretas efetivamente tomadas para resolução das questões apontadas, ou, em caso de acatamento parcial, quais serão os itens não acatados, informando, em qualquer hipótese de negativa, os respectivos fundamentos, juntando toda documentação pertinente.
Além de recomendar a responsabilização administrativa dos culpados no caso de as denúncias serem confirmadas, o MPF abriu investigações para apurar eventuais responsabilidades nas áreas cível e criminal.
As denúncias – Desde o início de agosto, quando a FTIP passou a atuar no presídio, o MPF vem recebendo denúncias de mães, companheiras de presos, presos soltos recentemente, membros do Conselho Penitenciário e membros da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que fiscalizam o sistema penitenciário. Os relatos narram uma série de violações a normas nacionais e internacionais no tratamento dos presos.
Entre elas, denúncias de que os presos vêm sofrendo violência física pelos agentes federais, pois estão apanhando e sendo atingidos por balas de borracha e spray de pimenta, de modo constante, frequente e injustificado, mesmo após muitos dias da intervenção, e sem que tenha ocorrido indisciplina dos presos.
Os presos, registram os denunciantes, também vêm sofrendo violências morais pelos agentes federais, como ameaças, intimidações, humilhações, demonstrações excessivas de poder e controle (como ordem dos agentes federais para ficarem imóveis e em silêncio absoluto, pelo que, por impossível, apanham), de modo constante, frequente e injustificado, mesmo após muitos dias da intervenção, e também sem prévia indisciplina dos presos.
Também há declarações de que os detentos não estariam sendo alimentados (veem comida chegando, mas não é distribuída, dizem os denunciantes), ou que são alimentados em quantidade e qualidade aquém da mínima essencial, sem qualquer diferenciação da alimentação para diabético, hipertensos e doentes, além de sofrerem privação de água, apontam as denúncias.
Há relatos, ainda, de falta de assistência à saúde, mesmo no caso de presos feridos com balas de borracha, ou lesionados por causa da violência física dos agentes federais, com privação de medicação e tratamento, inclusive nos casos de pessoas com deficiência, HIV e tuberculose.
Informações enviadas ao MPF também apontam que os condenados estão em locais sem condições mínimas de salubridade e higiene, com ratos, superlotação em nível de desmaio e sufocamento, dormindo no chão.
Os detentos foram privados ou recebem quantidade insuficiente de materiais de higiene pessoal, são obrigados a ficar nus ou somente de cueca, descalços, molhados, e alguns não podendo sair do lugar sob pena de violência, sujos pelas necessidades fisiológicas, citam os denunciantes.
Também há relatos de que os presos estão incomunicáveis, sem acesso não somente à visita de familiares, mas também de advogados, membros da OAB no exercício da fiscalização do sistema penitenciário, e de integrantes do Conselho Penitenciário.
Legislação – A recomendação do MPF destaca várias normas que proíbem a prática de atos como os relatados. A primeira citação é da Constituição da República, que determina que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” e que “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”.
A Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes – Decreto nº 40 de 15/02/1991 estabelece que “em nenhum caso poderão invocar-se circunstâncias excepcionais (…) ou qualquer outra emergência pública como justificação para tortura”. A mesma convenção determina que as autoridades competentes procederão imediatamente a uma investigação imparcial, e que serão tomadas medidas para assegurar a proteção do queixoso e das testemunhas.
A lei 9.455/97 define que constitui crime de tortura submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. A pena é de reclusão de dois a oito anos. Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita à medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal. Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.
Lei 4.898/65 estabelece que constitui abuso de autoridade submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei, e o Código Penal prevê punição para lesão corporal, lesão corporal de natureza grave, omissão de socorro, maus-tratos, constrangimento ilegal, associação criminosa, condescendência criminosa e violência arbitrária, lembra o MPF.
O MPF também cita trechos da lei 12.850/13 (organização criminosa), lei 8.429/92 (improbidade administrativa), lei complementar nº 75/93 (organização, as atribuições e o Estatuto do Ministério Público da União), a resolução nº 14, de 11 de novembro de 1994, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), que fixa regras mínimas para o tratamento do preso no Brasil, e a a lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia).
Protocolo de Istambul – Na recomendação é citado, ainda, o Protocolo de Istambul, Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotado em 18 de dezembro de 2002. O protocolo considera a Regra de Mandela – conjunto de regras mínimas das Nações Unidas para o tratamento de presos.
Entre as regras, estão a que estabelece que a disciplina e a ordem devem ser mantidas, mas sem maiores restrições do que as necessárias para garantir a custódia segura, e a que determina que em nenhuma hipótese devem as restrições ou sanções disciplinares implicar em tortura ou outra forma de tratamento ou sanções cruéis, desumanos ou degradantes.
Sanções disciplinares ou medidas restritivas não devem incluir a proibição de contato com a família. O contato familiar só pode ser restringido por um prazo limitado e quando for estritamente necessário, diz outra das regras ressaltadas.
O uso de instrumentos restritivos que são inerentemente degradantes ou dolorosos devem ser proibidos, e outros instrumentos só devem ser utilizados quando previstos em lei e em circunstâncias específicas.
Quando a utilização de instrumentos restritivos for autorizada, esses instrumentos serão utilizados apenas quando outras formas menos severas de controle não forem efetivas para enfrentar os riscos representados pelo movimento sem a restrição; o método de restrição será o menos invasivo necessário, e razoável para controlar a movimentação do preso, baseado no nível e na natureza do risco apresentado; e os instrumentos de restrição devem ser utilizados apenas durante o período exigido e devem ser retirados, assim que possível, depois que o risco que motivou a restrição não esteja mais presente.
As revistas íntimas e inspeções serão conduzidas respeitando-se a inerente dignidade humana e a privacidade do indivíduo sob inspeção, assim como os princípios da proporcionalidade, legalidade e necessidade, ordena outra regra.
As revistas íntimas e inspeções não serão utilizadas para assediar, intimidar ou invadir desnecessariamente a privacidade do preso, e, para os fins de responsabilização, a administração prisional deve manter registros apropriados das revistas íntimas e inspeções.
O MPF destaca, ainda, que, segundo o Protocolo de Istambul, revistas íntimas invasivas, incluindo o ato de despir e de inspecionar partes íntimas do corpo, devem ser empreendidas apenas quando forem absolutamente necessárias.
Alegações de tortura ou tratamentos ou sanções cruéis, desumanos ou degradantes deverão ser apreciadas imediatamente e devem resultar em uma pronta e imparcial investigação. Os presos devem ter a oportunidade, tempo e meios adequados para receberem visitas e se comunicarem com um advogado de sua própria escolha ou com um defensor público, sem demora, interceptação ou censura, em total confidencialidade, sobre qualquer assunto legal, em conformidade com a legislação local. Tais encontros podem estar sob as vistas de agentes prisionais, mas não passíveis de serem ouvidos por estes, determinam outros trechos do protocolo destacados pelo MPF.
Ainda conforme a Regra de Mandela, todo preso deve ter o direito, e a ele devem ser assegurados os meios para tanto, de informar imediatamente a sua família, ou qualquer outra pessoa designada como seu contato, sobre qualquer doença ou ferimento grave, e os indivíduos designados pelo preso para receberem as informações sobre sua saúde devem ser notificados pelo diretor em caso de doença grave ou ferimento.
Não obstante uma investigação interna, o diretor da unidade prisional deve reportar, imediatamente, o ferimento grave à autoridade judicial ou a outra autoridade competente, independente da administração prisional; e deve determinar a investigação imediata, imparcial e efetiva sobre as circunstâncias e causas de tais eventos. A administração prisional deve cooperar integralmente com a referida autoridade e assegurar que todas as evidências sejam preservadas.
Essa obrigação de reportar as informações às autoridades deve ser igualmente aplicada quando houver indícios razoáveis para se supor que um ato de tortura ou de tratamento ou sanção cruel, desumana ou degradante tenha sido cometido na unidade prisional, mesmo que não tenha recebido reclamação formal.
Os funcionários das unidades prisionais não devem, em seu relacionamento com os presos, usar de força, exceto em caso de autodefesa, tentativa de fuga, ou resistência ativa ou passiva a uma ordem fundada em leis ou regulamentos. Agentes que recorram ao uso da força não devem fazê-lo além do estritamente necessário e devem relatar o incidente imediatamente ao diretor da unidade prisional.
Devem haver inspeções externas conduzidas por órgão independente da administração prisional, e os inspetores devem ter autoridade para: escolher livremente qual estabelecimento prisional deve ser inspecionado (inclusive fazendo visitas de iniciativa própria sem prévio aviso) e quais presos devem ser entrevistados; e conduzir entrevistas com os presos e com os funcionários prisionais, em total privacidade e confidencialidade, durante suas visitas.
Esforços devem ser empreendidos para tornar os relatórios de inspeções externas de acesso público, excluindo-se qualquer dado pessoal dos presos, a menos que tenham fornecido seu consentimento explícito. A administração prisional ou qualquer outra autoridade competente, conforme apropriado, indicará, em um prazo razoável, se as recomendações advindas de inspeções externas serão implementadas, determina outra das regras destacadas pelo MPF.
Ministério Público Federal no Pará
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