Direitos do Cidadão
26 de Setembro de 2019 às 15h10
MPF quer revogação de norma que autoriza intervenções médicas sem consentimento das gestantes
Resolução do CFM permite que escolhas da mãe durante o parto sejam caracterizadas como abuso de direito da mulher em relação ao feto
Foto ilustrativa: Pixabay
O Ministério Público Federal expediu uma recomendação para que as gestantes brasileiras não sejam obrigadas a passar por intervenções médicas com as quais não concordam. O documento, assinado por 16 procuradores da República de nove estados, é direcionado ao Conselho Federal de Medicina e busca a revogação de artigos da Resolução nº 2232/2019. A norma do CFM, publicada na semana passada, abre espaço para que a autonomia da mãe na escolha de procedimentos durante o parto seja caracterizada como abuso de direito da mulher em relação ao feto, mesmo que não haja risco iminente de vida.
O MPF alerta que, da forma como estão redigidos, os artigos permitem que o médico não aceite a recusa da gestante em se submeter a determinadas intervenções e que o profissional adote medidas para coagir a paciente a receber tratamentos que não deseja. A resolução prevê, por exemplo, que casos de recusa terapêutica por “abuso de direito” da mulher deverão ser comunicados “ao diretor técnico [do estabelecimento de saúde] para que este tome as providências necessárias perante as autoridades competentes, visando assegurar o tratamento proposto”.
Pela nova norma, a adoção de procedimentos médicos coercitivos ou não consentidos é “autorizada” pelo CFM em casos de urgência e emergência. Contudo, as regras recém-estabelecidas são flagrantemente ilegais, pois ignoram a exigência de iminente perigo de morte para que tratamentos recusados sejam impostos aos pacientes.
“Tais regras esvaziam integralmente a autonomia das parturientes sobre seu próprio corpo, afastando suas escolhas e decisões quanto ao nascimento de seus filhos. De igual forma, conferem ao médico, de forma ilegítima e antijurídica, uma liberdade de atuação profissional ilimitada durante a assistência ao parto, independentemente do grau de risco a que se submetem mãe e feto, seja ele baixo, médio ou alto”, destaca a recomendação do MPF.
Além de contrariar o Código de Ética Médica, o desrespeito à autonomia da gestante também configura crime. Segundo o artigo 146 do Código Penal, os profissionais que agirem conforme a Resolução nº 2232/2019 poderão responder por constrangimento ilegal caso, no atendimento à gestação e ao parto, realizem intervenções médicas ou cirúrgicas sem o consentimento da mulher quando não existir o iminente perigo de morte. “O direito dos médicos de se recusarem a realizar procedimentos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência, lhes permite encaminhar pacientes a outros médicos, mas não obrigar seus pacientes a aceitarem suas determinações, caso não caracterizado o iminente risco de vida”, lembram os procuradores.
Violência obstétrica – Para o MPF, os artigos 5º, §2º, 6º e 10º da Resolução nº 2232/2019 podem favorecer a adoção de procedimentos desnecessários e violadores da autonomia das gestantes, quando se manifestam contrariamente a eles, como a episiotomia (corte entre a vagina e o ânus para ampliar o canal de passagem do bebê), a administração de soro de ocitocina (para acelerar o trabalho de parto) e a utilização de manobra de kristeller (pressão na barriga da mãe para apressar o nascimento). Todas estas práticas não são indicadas ou são consideradas prejudiciais quando realizadas de forma irrestrita, segundo as diretrizes adotadas pelo Ministério da Saúde e pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
Além disso, a aplicação das novas regras tende a favorecer e perpetuar cesarianas desnecessárias, visto que a opção da gestante pelo parto normal pode ser entendida como “abuso de direito”. “No Brasil, uma em cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência no parto, associada a intervenções desnecessárias e prejudiciais à saúde, além de desrespeitos verbais e negligência. O país também ostenta um dos mais elevados índices mundiais de partos cirúrgicos, o que implica que milhares de mulheres sejam submetidas a cesáreas desnecessárias anualmente, sendo expostas a riscos superiores aos do parto normal”, destaca a recomendação do MPF.
Os procuradores pedem que o CFM revogue os artigos questionados, em relação à assistência ao nascimento, reconhecendo que apenas em casos de iminente risco de morte o médico poderá adotar medidas em contrariedade ao desejo materno. Da mesma forma, o Conselho deverá assentir que caberá à mulher ponderar entre os riscos à sua vida e à vida do feto quando fizer opções por procedimentos terapêuticos relacionados à gestação e ao parto, conforme princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da legalidade e da autonomia.
A recomendação expedida pelo MPF é resultado da atuação de diversos procuradores da República que trabalham em prol da humanização do nascimento e do direito de escolha da gestante. Atualmente, tramitam pelo país inúmeros inquéritos civis e ações judiciais em que constam relatos de mulheres que tiveram sua integridade física e psicológica violada durante a assistência ao parto, bem como questionamentos quanto a Resoluções de Conselhos Regionais de Medicina violadoras da autonomia das mulheres. Tais procedimentos revelam que profissionais de saúde, ao invés de adotarem as boas práticas de Atenção ao Parto e ao Nascimento, previstas pela OMS, optam por impor às gestantes procedimentos desaconselhados pelas evidências científicas, bem como exercer a medicina de forma autoritária, em prejuízo ao diálogo e à autonomia das mulheres.
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